Relatório é esperança de índios na luta por terras perdidas na ditadura
Um documento de 7 mil páginas descoberto em junho do ano passado é a mais nova esperança de comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul para reforçar as lutas judiciais sobre reconhecimento e posse de terras que hoje pertencem a fazendeiros e produtores rurais. Encontrado no Museu do Índio no Rio de Janeiro, o Relatório Figueiredo, produzido em 1967, traz relatos de violência, abusos e atrocidades cometidas contra índios durante a ditadura militar no Brasil.
O relatório chefiado pelo então procurador da república Jader de Figueiredo Correia foi solicitado depois de denúncias apuradas por duas CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito) nos anos 1955 e 1962 que apontaram irregularidades cometidas pelo SPI (serviço de Proteção ao Índio), órgão que antecedeu a Funai (Fundação Nacional do Índio).
Para apurar as denúncias, Figueiredo na companhia de dois funcionários do Ministério do Interior foram a campo e passaram meses visitando comunidades indígenas e colhendo relatos de índios que falavam sobre as violências sofridas, principalmente por servidores do SPI e militares.
Em Mato Grosso do Sul, na época Mato Grosso, a equipe esteve no mês de novembro de 1965. Um dos locais por onde o procurador passou foi a Região da Terra Buriti, hoje situada em Sidrolândia, distante 71 quilômetros da Capital e palco de um dos principais conflitos de terra no Estado, que terminou na morte do indígena Oziel Gabriel em maio de 2013.
Em um dos documentos anexados ao relatório, um boletim mostra a percepção da equipe em relação aos indígenas que viviam nas aldeias Buriti, Córrego do Meio e Água Azul, totalizando 610 pessoas.
“Os terenos de “Buriti”, como aqueles que conhecemos em outras reservas, estão num estado muito adiantado de aculturação, integrados inteiramente nos costumes e hábitos da sociedade brasileira, conhecendo preceitos de nossos códigos... Nos municípios de Campo Grande, Aquidauana, Miranda, Nioaque, Sidrolândia e outros vizinhos – os trabalhos rurais e as várias atividades operárias são executadas de preferência por elementos terenos, bem assim as famílias abastadas daquelas cidades têm nos serviços domésticos também criaturas terenas”, diz o texto.
Sobre os crimes cometidos por integrantes do SPI contra os terena, o relatório afirma que entre eles há delitos contra o patrimônio indígena, corrupção e peculato. Em um dos documentos contidos no montante, consta que em anos anteriores a 1965, a arrecadação de renda dos indígenas chegava a 10 milhões de cruzeiros por ano, mas na época da ditadura, o valor não chegou a um décimo desse total.
Jornais da época, inclusive, noticiavam denúncias de desvio de rendas que chegavam a 300 milhões de cruzeiros e deveriam ser destinadas para melhorias na vida de indígenas por parte do SPI.
Outras denúncias trazidas no relatório de Figueiredo falam sobre a usurpação da terra indígena na região de Cachoeirinha, em Miranda, distante 201 quilômetros da Capital. Em algumas páginas, há relatos de desvio de mais de 35 mil hectares após acordo firmado com autoridades do Estado nos anos de 1960.
Ainda em Miranda, na etnia terena, a violação de direitos humanos também é retratada nos documentos assinados por Jader Figueiredo. Entre eles, há as consequências de serrarias instaladas na cidade e que tinham os índios como operários. Mantidas pelo SPI, as serrarias contribuíram para o desmatamento, extinção de animais, ervas medicinais e a má qualidade de vida para os indígenas.
“A área do P.I. está totalmente devastada, de sua antiga floresta nada mais resta, só a Serraria está parada, não levou o progresso e o conforto ao índio, levou a destruição de suas matas e consequentemente caça, fonte de alimentação daquela gente. O S.P.I. deve retirar a Serraria afim de que a ferrugem não destrua totalmente aquele precioso material, mas, onde irá ela levar a destruição e a miséria ainda maior ao Índio? Quem irá desfrutar dos bens que proporcionam a máquina”, afirma o relatório.
Além de casos de violência contra os terena, há documentação de situações degradantes vividas por índios das etnias Guarani-Kaiowá, Kinikinau, Kadiwuéu, Ofaié e Guató em várias regiões de Mato Grosso do Sul. Entre eles, casos envolvendo a distribuição de roupas infectadas com vírus de sarampo e tuberculose aos índios com objetivo de diminuir a população de algumas regiões.
Problemas conhecidos – Para o advogado indígena e representante dos terena, Luiz Henrique Eloy Amado, os relatos contidos do relatório, que muitos achavam ter sido extinto em um incêndio há décadas, já eram conhecidos pelas comunidades, mas com a documentação oficial, as reivindicações ganham mais força.
“Nós já sabíamos de muitas coisas através dos anciões das aldeias, mas agora ler isso em um documento oficial do país é diferente, tem um peso maior. Os relatos de violência e até tortura são graves e as autoridades já sabem disso”, diz.
Além de documentar casos de violência, o advogado acredita que o Relatório Figueiredo será a nova alternativa para reforçar processos judiciais sobre posse e reconhecimento de terras tradicionalmente indígenas.
“Vamos anexar esse documento nos processos, nós sabemos que temos direitos a reparação e indenização, mas vamos querer essas reparações com o reconhecimento das terras. Vamos trazer os problemas à tona e reforçar que o Estado, que tinha a tutela dos índios, tem responsabilidade nisso”.
Comissão da Verdade – Criada no ano de 2012 para apurar violações de Direitos Humanos de 1946 a 1988, a Comissão Nacional da Verdade já tem estudos feitos com base no Relatório Figueiredo, encontrado no ano passado. Para reforçar toda a apuração, a comissão virá a Mato Grosso do Sul nos próximos dias 25 e 26 de abril onde participam de uma sessão de audiência em Dourados, distante 233 quilômetros da Capital.
Segundo o professor de História Intercultural da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e um dos organizadores do evento, Neimar Machado, a equipe irá colher depoimentos de indígenas parentes daqueles que foram vítimas da violência da época da ditadura e que também passaram por violações dos direitos.
A expectativa é que pelo menos 300 pessoas, incluindo indígenas de várias aldeias do Estado, acompanhem a sessão. Integrantes do MPF (Ministério Público Federal) também participam do evento.