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Rumo a Corumbá: 262 é rota da chipa, jacaré pego à unha e a doce prosa

Na beira da estrada, gente amigável e a exuberância da natureza que se ajusta ao pulso das águas

Aline dos Santos, enviada especial a Corumbá | 11/10/2018 07:02
Maria fez amizade com os jacarés e consegue até pegar um deles pelo rabo. (Foto: Kisie Ainoã)
Maria fez amizade com os jacarés e consegue até pegar um deles pelo rabo. (Foto: Kisie Ainoã)

Nos 419 quilômetros da Rota Oeste, que liga Campo Grande a Corumbá, fronteira com a Bolívia, a BR-262 é território do pulso das águas, tuiuiús, beijadas garças (como classifica o poeta Manoel de Barros), jacarés encantados a toque de berrante e providenciais pedaços de peixes. Mas não é só de belezas naturais que se faz esse caminho.

A rodovia também é rota para encontrar gente amigável, como a senhora de 87 anos, que mora ao pé do morro, na zona rural de Corumbá, e logo nas primeiras horas do dia oferece café fresquinho, enquanto a roupa recém-lavada já seca ao calor de 25ºC que acorda os pantaneiros.

A simpatia também se encontra no acampamento às margens da rodovia, onde repórter logo é convidado para sentar numa pequenina varanda, de frente para a rodovia.

Na viagem longa, com poucos postos de combustíveis e de venda de alimentos, exceção quando a pista passa por perímetro urbano, indicativo da fome é o consumo de chipas e pastéis numa das lanchonetes: oito mil por mês.

Rumo ao Oeste do Estado, a rodovia passa por Terenos, Aquidauana, Anastácio, Miranda, Corumbá até terminar próximo a Bolívia. Neste 11 de outubro, quando Mato Grosso do Sul chega aos 41 anos, o Campo Grande News te convida para a prosa, a estrada, as belezas e o humano da 262.

Maria do Carmo mora em acampamento no km 408 da BR-262. (Foto: Kisie Ainoã)
Maria do Carmo mora em acampamento no km 408 da BR-262. (Foto: Kisie Ainoã)

Cafezinho no acampamento fantasma

No trajeto para Aquidauana, na margem direita de quem partiu de Campo Grande, surge na paisagem acampamento que chama atenção pelo número de casas e pelos cadeados fechando as portas pelo lado de fora. Na minicidade fantasma, erguida pela MAF (Movimento da Agricultura Familiar), moram Maria do Carmo Rodrigues Foz, 67 anos, e o amigo Genivaldo, 60 anos.

Segundo ele, na vida à beira da rodovia, a rotina é como a de qualquer casa, com o diferencial da barulheira dos veículos que passam zunindo pela pista.

“Dá para escutar a notícia mais ou menos”, conta Genivaldo, mostrando o rádio na varanda. A energia vem do gerador, movido à gasolina e ligado todos os dias durante uma hora. Já a água é preciso buscar num córrego do outro lado da via.

Na segunda-feira de primeiro de outubro, acampamento tinha apenas três pessoas. (Foto: Kisie Ainoã)
Na segunda-feira de primeiro de outubro, acampamento tinha apenas três pessoas. (Foto: Kisie Ainoã)

“Nem os fazendeiros nem os chacareiros gostam de dar água para a gente”, diz Maria do Carmo.

Ela conta que a rotina num acampamento e suas consequentes moradias precárias provocam muitas perguntas, mas esclarece que trabalha como as demais donas de casa.

“A gente lava roupa, limpa casa, faz almoço”, diz, sem esquecer de oferecer um cafezinho aos visitantes. No mais, o dia segue cuidando da criação de porcos e galinhas. Se precisa ir à cidade, como atendimento para saúde, ruma para Terenos no carro que tem na garagem.

O acampamento só enche no dia das reuniões e, como conta Maria do Carmo, tem prazo da Justiça para deixar à margem da rodovia no mês que vem.

Seguindo em frente na rodovia, surge um acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Sem autorização do líder, nenhum morador quis dar entrevista. O que não impediu de nos apresentarem uma horta, que bem pertinho da rodovia, produz couve, alface, cebolinha, além do cultivo de mandioca.

Alcindo Ávila é dono da Lanchonete Redondo, negócio de família criado por patriarca vindo do RS. (Foto: Kisie Ainoã)
Alcindo Ávila é dono da Lanchonete Redondo, negócio de família criado por patriarca vindo do RS. (Foto: Kisie Ainoã)

DNA gaúcho na chipa do “redondo”

A lanchonete Redondo, que protagoniza piadinhas dos viajantes, é mais conhecida pelos moradores como o Posto Correntes, que fica a 45 quilômetros de Aquidauana. A lanchonete, que funciona desde 1975, tem DNA gaúcho e vende, em média, oito mil chipas e pastéis por mês.

A história começou com Neno Menezes de Ávila, que veio do Rio Grande do Sul. A arquitetura circular do local, que faz jus ao nome de redondo, foi ideia dele. “Quis fazer uma coisa diferente. Veio do Rio Grande do Sul e trouxe a ideia”, conta Alcindo Cardoso de Ávila, 62 anos, filho do idealizador do Redondo.

Na venda, o carro-chefe é a chipa e o pastel. Bem popular, a chipa custa R$ 4,50 e em geral é consumida em companhia do café, cujo preço é R$ 2. Uma mercearia atende moradores da zona rural no entorno, enquanto a novidade que caiu no gosto dos viajantes é a venda de verduras sem agrotóxico.

“Produzimos aqui. Tem alface, couve, tomate cereja, repolho, pepino”, diz Alcindo. A lanchonete abre às 5h e encerra às 21h40. “O Brasil inteiro passa por aqui”.

Bocaiuva vira farinha e doces em Miranda: fruto do Cerrado que movimenta a economia. (Foto: Kisie Ainoã)
Bocaiuva vira farinha e doces em Miranda: fruto do Cerrado que movimenta a economia. (Foto: Kisie Ainoã)

Bocaiúva: o Pantanal que adoça a boca

Típica do Cerrado, a bocaiúva move sabores e a economia em Miranda. O fruto ganhou versões que incluem um milk-shake premiado, brigadeiro, bolo, sorvete e uma farinha cheia de utilidades na cozinha. “A gente foca no regional mesmo, é uma parada temática”, diz Cristina Moreira Bastos, da pousada e posto Pioneiros.

Ela uniu o sabor da infância a um pedido dos viajantes, que buscavam um sabor típico dessa região turística de Mato Grosso do Sul. A média mensal é de 70 quilos de farinha de bocaiuva, 30 quilos de polpa e dois mil potes de sorvete. Parte da produção da farinha é comprada de famílias que moram no entorno.

Basicamente, a bocaiúva, que tem aos montes na região, é coletada, retira a “carninha”, seca-se ao sol e faz a farinha. A história do Pioneiros começa há 38 anos, com os pais de Cristina.

Cristina conta que história da família em Miranda começou há 38 anos.  (Foto: Kisie Ainoã)
Cristina conta que história da família em Miranda começou há 38 anos. (Foto: Kisie Ainoã)

“Era estrada de chão e não tinha luz”, recorda Cristina, lembrando que nesse tempo já era fã da bocaiúva.

Ela saiu de lá para fazer faculdade e voltou para inserir o sabor local no cardápio, como o almoço com comida de comitiva e o pastel de cupim. Hoje, o local também tem agência de turismo e pousada, muito procurada, ultimamente, por visitantes do Espirito Santo.

O sorvete de bocaiúva é produzido em Corumbá e cada pote pequeno custa R$ 2,50. Já o milk-shake, resultado de receita exclusiva, custa R$ 12.

A rodovia que vira janela

Primeira moradora do Distrito de Salobra, Aparecida Maria lembra que antes "nem tinha estrada de carro passar". (Foto: Kisie Ainoã)
Primeira moradora do Distrito de Salobra, Aparecida Maria lembra que antes "nem tinha estrada de carro passar". (Foto: Kisie Ainoã)

Prestes a completar 75 anos em 13 de outubro, Aparecida Maria Amorim é a primeira moradora do distrito do Salobra, que fica logo após a ponte sobre o Rio Miranda. A reportagem a encontrou sentada de costas para a casa e de frente para o movimento da rodovia, à sombra de uma mangueira. Sem televisão por ser evangélica, ela gosta de ver a vida passar pela  via que conhece há décadas. “Nem tinha estrada para carro passar”, rememora.

Aparecida mora sozinha, mas com parente na casa ao lado, e cuida da lida do lar, com afazeres como lavar roupa e fazer comida. O dia termina por volta das 20h, quando fecha as portas de casa e abre o caminho para o sono.

O Salobra, a 15 quilômetros de Miranda, também é o lar do casal Maria de Lourdes Fialho Duarte, 42 anos, e Milton Martins Samuel, 43 anos. De folga numa tarde de segunda-feira, ela é cozinheira e ele trabalha com pesca, profissões indicativas do que move a economia local: os pescadores. A tarde era dedicada a conversa fora de casa e ao sossego de um endereço tranquilo.

Ponte na BR-262 vista da margem do Rio Miranda. (Foto: Kisie Ainoã)
Ponte na BR-262 vista da margem do Rio Miranda. (Foto: Kisie Ainoã)

Do RJ ao Salobra: a rotina entre peixes e pernilongos

Comerciante no Rio de Janeiro, Valcenir da Silva Vargas, 53 anos, é um dos personagens temporários da BR-262.

Na margem do Rio Miranda, ele veio a Mato Grosso do Sul em um grupo de 16 amigos. Habituado à pesca em Cuiabá, ele já conhecia Corumbá e no começo de outubro veio conferir a pesca no distrito de Salobra. Na luta contra os pernilongos, braços e pernas são protegidos com roupas, mesmo no calor sufocante. 

Morador do Rio de Janeiro, Valcenir é um dos personagens provisórios da BR-262. (Foto: Kisie Ainoã)
Morador do Rio de Janeiro, Valcenir é um dos personagens provisórios da BR-262. (Foto: Kisie Ainoã)

Valcenir define a pescaria como regular, mas que ele e os amigos se permitem a travessuras como viajar de carro por 23h do interior do Rio de Janeiro até o distrito.

A vocação para a pesca se mostra por toda a BR-262. A partir de Campo Grande, na saída para Aquidauana, já surgem os primeiros comércios de iscas vivas.

No Isca do Gilsão, Data, 49 anos, diz apenas o apelido, justificando não gostar do nome, e explica que os mais vendidos são tuvira e curimba, com preço médio de R$ 35 a dúzia. As iscas são levadas para os rios em busca de peixes como dourado, pintado e cachara.

Venda de Maria do Jacaré às margens da BR-262. (Foto: Kisie Ainoã)
Venda de Maria do Jacaré às margens da BR-262. (Foto: Kisie Ainoã)

A Maria que não é Maria e seus incríveis jacarés

De um lado da BR-262, rumo a Corumbá, águas espraiadas com suas garças e tuiuiús. Do outro, uma pequena venda que anuncia a fama da Maria do Jacaré. Dentro do comércio, ela conta que não está num de seus melhores dias, a tradicional pergunta sobre a idade do entrevistado quase encerra o diálogo, mas, logo, Eurides Fátima Macena de Barros, explica que a irritação deriva de uma vida dura, com passagens como a perda de um filho ainda bebê.

Confiante em dias melhores, abre um sorriso, colore de batom os lábios, põe o óculos de sol e sai com o berrante para chamar Tafarel e Ronaldinho, seus amigos jacarés. “Quem não vai ter amor numa natureza dessa”, questiona Maria, que recebeu esse apelido ainda criança. 

Na venda, adesivos de grupos de motociclistas e fotos de visitantes mostram que o local é parada obrigatória. Das margens do alagado, surgem os répteis enquanto um público de doze pessoas assiste. 

Eurisde conta de uma vida dura e se apega à esperança. (Foto: Kisie Ainoã)
Eurisde conta de uma vida dura e se apega à esperança. (Foto: Kisie Ainoã)

Findo o espetáculo dos jacarés, Maria volta ao trabalho, ao lado do filho. Um abraço na despedida, com o carinho de uma mulher de fibra.

Aos 84 anos, Maria Rafaela sente saudade de quando podia trabalhar mais. (Foto: Kisie Ainoã)
Aos 84 anos, Maria Rafaela sente saudade de quando podia trabalhar mais. (Foto: Kisie Ainoã)

Desde 1959 ao pé do morro: a vida por Maria Rafaela

Aos 84 anos, Maria Rafaela Sandoval não titubeia ao lembrar há quantos anos morando no entorno de um dos muitos morros da paisagem de Corumbá. “Desde 1959”, diz. Completando que é gostoso e fica melhor ainda quando os “pernilongos estão dormindo”. Ela nasceu no distrito Maria Coelho e há 59 anos mora numa casa de madeira a pouca distância da BR-262.

Sob o olhar vigilante da cachorra Nina, que logo deixa bem claro não gostar de visitas, Maria conta que teve cinco filhos. Um deles mora com ela. De mês em mês, vai a Corumbá para fazer compras. “Mas é muito quente, aqui é mais fresquinho”, diz. A água vem encanada de uma nascente.

Com problemas de saúde que dificultam a locomoção, conta sentir falta de ter trabalho mais ativo com a terra. “Não parava nem para comer. Mas agora tô lascada. Fico revoltada. Mas o que vou fazer”, afirma. Sobre a longevidade, diz que aos 25 anos acreditava que nem alcançaria os 40 anos. Hoje, vive com saudade de não poder trabalhar mais.

No caminho para Aquidauana, morro e placa alertando para travessia de animais silvestres. (Foto: Kisie Ainoã)
No caminho para Aquidauana, morro e placa alertando para travessia de animais silvestres. (Foto: Kisie Ainoã)

Estrada de bichos e de águas

Para os caminhoneiros que faz o vaivém do gado na BR-262, o maior perigo da via são os bichos. No caminho, a reportagem encontrou uma cobra morta na estrada e um tatu-bola numa travessia perigosa. De Corumbá a Campo Grande, são quase 150 placas alertando para a travessia de animais e pedindo a preservação do Pantanal. Os radares também marcam presença, controlando o ímpeto dos motoristas.

“A rodovia está razoável. O perigo são os bichos”, diz o caminhoneiro Hugo Côrrea, 35 anos. No trecho entre Miranda e Corumbá, as quase 60 pontes de vazantes indicam que a rodovia precisou se integrar ao ritmo das águas. A pista foi construída sobre um aterro para fugir das inundações durante o período de cheia e com pontes para dar passagem à água.

Marco zero da BR-262 é na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul. (Foto: Kisie Ainoã)
Marco zero da BR-262 é na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul. (Foto: Kisie Ainoã)
Fim da linha: rodovia vai ao km 778 e termina perto da fronteira com a Bolívia. (Foto: Kisie Ainoã)
Fim da linha: rodovia vai ao km 778 e termina perto da fronteira com a Bolívia. (Foto: Kisie Ainoã)

Confira a galeria de imagens:

  • Pôr do sol em Corumbá. (Foto: Kisie Ainoã)
  • Um dos cenários do Rio Paraguai em Corumbá. (Foto: Kisie Ainoã)
  • Macarrão frito é comida de comitiva. (Foto: Kisie Ainoã)
  • Pássaro no porto de Corumbá. (Foto: Kisie Ainoã)
  • Placas pedem preservação do Pantanal na BR-262. (Foto: Kisie Ainoã)
  • Lanchonete Redondo é tradicional ponto de parada a caminho de Aquidauana. (Foto: Kisie Ainoã)
  • Corpo na pista: cobra morreu atropelada entre Corumbá e Miranda. (Foto: Kisie Ainoã)
  • Obra na rodovia.(Foto: Kisie Ainoã)
  • O dia de despede em Corumbá. (Foto: Kisie Ainoã)
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