Prorrogação de Dívidas Rurais, entenda pelo menos o básico
I - INTRODUÇÃO
A atividade rural em nosso país é considerada estratégica por impactar fortemente a economia, as questões sociais e até mesmo a soberania nacional. Em razão disso, o ordenamento jurídico brasileiro traz uma série de normas que visam incentivar a produção rural.
A Constituição Federal possui todo um capítulo, a partir do artigo 184, a tratar da Política Agrícola e coube à Lei 8.171/91 (Lei Agrícola) regulamentá-la e, ao fazê-lo, no inciso XI de seu artigo 4 elegeu o crédito rural como um dos instrumentos de política agrícola em nosso país. Vale frisar que o crédito rural já estava regulamentado desde a Lei 4.829/65, que em seu artigo 4º expressamente estabeleceu competir ao Conselho Monetário Nacional disciplinar o crédito rural no país e produzir as respectivas normas operativas.
A vasta normatização em torno do assunto nos dá um vislumbre de como o agronegócio é fundamental para o país, sendo o crédito rural um instrumento reconhecidamente crucial para seu crescimento, pois é por meio dele que os produtores rurais conseguem trazer à realidade seus projetos e permanecerem firmes em meios às muitas dificuldades enfrentadas nessa empreitada tão exposta a todo tipo de intempéries.
É justamente por ser a atividade rural repleta de riscos, seja na criação de animais, nas plantações ou em qualquer outro segmento, que o produtor rural precisa ter proteção diferenciada. Assim, no uso de suas atribuições, o Conselho Monetário Nacional estabeleceu o Manual do Crédito Rural, mais conhecido apenas como MCR, onde, no item 2.6.4, consta a possibilidade de alongamento, ou seja, prorrogação das dívidas rurais em caso de dificuldade temporária de pagamento em razão de uma das causas que abordaremos mais adiante.
Neste momento, contudo, quero explicar o motivo da minha preferência em usar o termo “prorrogação” ao invés de “alongamento”. No meio jurídico é muito comum fazer uso de “alongamento”. Contudo, prefiro “prorrogação” porque tenho a sensação de que quando atendo clientes com essa necessidade e falo em alongamento de dívida, é como se fosse algo penoso, como se estivesse apenas aumentando a dívida, ao passo que prorrogar a dívida possui significado mais intuitivo. Talvez seja apenas uma equivocada impressão. Contudo, são tecnicamente aplicadas como sinônimas. Além do mais, o próprio Manual do Crédito Rural usa a expressão “prorrogar a dívida”.
É sobre essa prorrogação das dívidas rurais que trataremos neste texto.
II - O QUE EXATAMENTE DIZ O MANUAL DO CRÉDITO RURAL SOBRE A PRORROGAÇÃO DE DÍVIDAS RURAIS?
No capítulo 2 do MCR, a seção 6 trata do Reembolso e no item 4 existe a expressa previsão da prorrogação, assim redigida:
4 - Fica a instituição financeira autorizada a prorrogar a dívida, aos mesmos encargos financeiros pactuados no instrumento de crédito, desde que o mutuário comprove a dificuldade temporária para reembolso do crédito em razão de uma ou mais entre as situações abaixo, e que a instituição financeira ateste a necessidade de prorrogação e demonstre a capacidade de pagamento do mutuário: (Res CMN 4.883 art. 1o; Res CMN 4.905 art. 1o)
a) dificuldade de comercialização dos produtos; (Res CMN 4.883 art. 1o)
b) frustração de safras, por fatores adversos; (Res CMN 4.883 art. 1o)
c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações. (Res CMN 4.883 art. 1o)
Convém destacar alguns pontos-chave:
- a instituição financeira fica autorizada a prorrogar a dívida;
- deverão ser aplicados os mesmos encargos financeiros pactuados no instrumento de crédito;
- precisa ser atestada a necessidade de prorrogação;
- precisa ser demonstrada a capacidade de pagamento do mutuário;
- cabe ao mutuário comprovar a dificuldade temporária decorrente de:
- dificuldade de comercialização de produtos;
- frustração de safras, por fatores adversos ou
- eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.
III - QUAIS DÍVIDAS RURAIS PODEM SER PRORROGADAS?
A primeira questão que precisa ser abordada é sobre quais dívidas podem ser alongadas. A dívida para comprar terra ou uma camionete pode ser prorrogada com base na MCR 2.6.4? E dívidas tributárias e previdenciárias? Multas ambientais podem? As dívidas contraídas com fornecedores de insumos etc. estão incluídas nessa possibilidade? E aquelas contraídas com as cooperativas de crédito? Apesar de parecer simples, essa é uma pergunta frequente por parte dos produtores rurais.
As dívidas passíveis de prorrogação são aquelas oriundas de crédito rural, provenientes de recursos controlados, isto é, subsidiados, contratadas junto a bancos e cooperativas de crédito e destinadas a custeio, investimento, comercialização ou industrialização. Normalmente são formalizadas por meio de cédulas de crédito rural e, também, de cédula de crédito bancário.
Assim, as dívidas tributárias, previdenciárias, ambientais e mesmo as com fornecedores de insumos, não se enquadram como dívida rural e não podem ser alongadas com base na MCR 2.6.4. Com relação às dívidas para aquisição de camionete, depende se ela foi adquirida por meio de crédito rural, o que é possível em alguns casos conforme a MCR 3.3.3 a 3.3.8. De igual maneira, se o imóvel rural foi adquirido com recursos controlados, é possível o alongamento. Apesar de que as opções nesses casos são para pequenas propriedades. Então, de modo geral, as propriedades rurais costumam ser adquiridas com recursos do próprio produtor ou por meio de parcelamentos diretamente com o vendedor.
Importante registrar que tecnicamente falando as dívidas rurais, submetidas ao MCR, ainda que oriundas de recursos livres também poderiam ser beneficiadas com a prorrogação baseada na MCR 6.2.4, porém, fato é que a jurisprudência é predominante no sentido de limitar a prorrogação aos contratos de recursos controlados. Apesar disso, em alguns casos levantar essa discussão pode ser crucial, especialmente se o Produtor Rural não foi bem orientado pelo agente financeiro, inclusive para facilitar eventual negociação com o credor.
IV - PRORROGAR A DÍVIDA É OBRIGAÇÃO DOS BANCOS E DAS COOPERATIVAS OU ELES PODEM SIMPLESMENTE NEGAR?
Em maio de 2021 o Conselho Monetário Nacional realizou mudanças no MCR e a possibilidade de prorrogação das dívidas que estava no item 2.6.9 passou para o item 2.6.4, com uma alteração que chamou muita atenção à época. Apesar de hoje a discussão estar praticamente superada, trago apenas para ilustração.
É que na redação anterior a maio de 2021, o MCR falava que “é devida a prorrogação da dívida” (2.6.9) e passou a prever que “a instituição financeira fica autorizada a prorrogar a dívida” (2.6.4).
Ou seja, o “dever” se tornou “autorização”.
Apesar da tentativa das instituições de crédito de dizer que não havia mais a obrigação em realizar a prorrogação, consolidou-se o entendimento de que uma vez cumpridos os requisitos do item 2.6.4, o direito à prorrogação deve ser observado.
Inclusive, a Súmula 298 do STJ, de 2004, é sistematicamente reconhecida como ainda vigente e segue sendo aplicada pelo STJ e pelos tribunais estaduais.
O alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas direito do devedor nos termos da lei. (SÚMULA 298, STJ)
Portanto, comprovado que:
a) ocorreu a situação adversa;
b) que a capacidade de pagamento foi prejudicada e
c) que a atividade ainda é viável e é possível o adimplemento conforme novo cronograma de pagamento.
Torna-se obrigatória a prorrogação para os bancos e cooperativas de crédito.
V – QUAIS AS SITUAÇÕES ADVERSAS QUE TORNAM OBRIGATÓRIA A PRORROGAÇÃO?
O Manual de Crédito Rural do Conselho Monetário Nacional, no item 2.6.4, prevê três situações adversas que justificam a prorrogação das dívidas rurais:
a) dificuldade de comercialização dos produtos; (Res CMN 4.883 art. 1º;
b) frustração de safras, por fatores adversos; (Res CMN 4.883 art. 1o)
c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações. (Res CMN 4.883 art. 1o)
Como facilmente se observa, as três hipóteses contemplam conceitos abertos que dão grande margem para ao juiz na aplicação do direito, por exemplo: “dificuldade”, “frustração”, “fatores adversos”, “ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento”. Eu posso ter um entendimento do que é “dificuldade”, enquanto outra pessoa pode ser bem mais sensível ou endurecida do que eu. Esse é o motivo, aliás, pelo qual situações bastante semelhantes acabam tendo resultado diferente, dependendo do juiz ou da turma no Tribunal que julgar o caso.
Situações relacionadas a severas mudanças climáticas; falta ou excesso de chuvas nos períodos cruciais, geadas, seca prolongada; bruscas alterações de preços tanto dos insumos como do resultado da produção; falta de insumos no mercado; ou seja, são muitas as hipóteses que podem justificar a prorrogação da dívida.
Aliás, é por causa da grande quantidade de situações que podem ocasionar a dificuldade de comercialização dos produtos, a frustração de safras ou as eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações, que o Conselho Monetário Nacional optou por não limitar as hipóteses que justificam a prorrogação, utilizando os conceitos abertos acima citados.
Por isso, é fundamental um laudo técnico, que demonstre da maneira mais clara possível a ocorrência dos episódios e que eles possuem impacto suficiente para afetar a capacidade de pagamento do devedor. Felizmente, aqui há um pouco mais de objetividade, pois serão utilizados elementos como fluxos de caixa, cotações, preço de insumos, quantidade de chuva, índice de produtividade entre outros.
VI – COMO COMPROVAR AS PERDAS E SITUAÇÕES ADVERSAS
Ponto de crucial importância nessa luta pela prorrogação das dívidas rurais é a prova de que (1) houve situação adversa; (2) que a capacidade de pagamento foi prejudicada e (3) que a atividade ainda é viável e é possível o adimplemento conforme novo cronograma de pagamento.
Essa prova é feita por meio de laudo elaborado por técnicos. É muito comum, aliás, que seja feito por agrônomos, economistas, médicos veterinários ou outro profissional que entenda do assunto. O ideal é que o profissional atue no segmento relacionado à atividade rural desempenhada pelo produtor. Esse laudo poderá ser reforçado com dados oficiais ou de entidades de classe que divulgam, por exemplo, os custos de produção na região.
Se a situação adversa foi por conta de algum problema na criação dos animais (bovinos, ovinos, suínos etc.), faz mais sentido que esse laudo seja assinado por um médico veterinário. Já em se tratando de problemas no cultivo de soja, milho, café, algodão etc., um engenheiro agrônomo pode ser a melhor opção. Ou seja, depende de cada caso.
Quanto à parte da “análise econômica” do laudo, onde se evidencia como a capacidade financeira do produtor foi afetada e qual sua necessidade de carência e parcelamento da dívida, nada impede que o mesmo profissional faça essa demonstração também, porém, sem dúvidas de que um laudo assinado por um economista poderá ter um peso maior em caso de impugnação por parte do credor.
Contudo, a experiência, o zelo, a objetividade e a capacidade do profissional na coleta e apresentação dos dados é que de fato terá relevância na apreciação que será feita inicialmente pela instituição financeira e posteriormente pelo Poder Judiciário.
Mas, além desse laudo particular, outras provas são bastante recomendáveis, como exemplo, laudo de vistoria técnica da seguradora, relatos de testemunhas, atas notariais sobre determinadas circunstâncias da propriedade, da lavoura ou dos animais, fotos e vídeos de testemunhas, inclusive fotos de satélites, notas fiscais de entrega corroborando a queda da produtividade, decretos de situação de emergência.
Em alguns casos, até mesmo ingressar com medida judicial buscando a produção antecipada de provas pode ser uma saída a ser estudada, dada a segurança que essa prova passará ao juiz em caso de disputa judicial.
Enfim, aqui vale a criatividade do profissional em fazer o possível para resguardar o direito de seu cliente.
VII – PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO
Questionamento sempre presente quando se trata de prorrogação de dívida rural é sobre ser ou não obrigatório o prévio requerimento administrativo junto à agência na qual o produtor possui relacionamento.
Fato é que não existe essa obrigação nem na lei, tampouco no microssistema da MCR 2.6.4 (que é diferente do previsto no 2.3.15) no que diz respeito à hipótese de prorrogação. Pelo contrário, a própria Constituição Federal garante que o acesso à justiça é livre (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” – XXXV, art. 5º CF).
Apesar disso, assim como em outras áreas do direito (previdenciário, securitário, administrativo etc.), os tribunais, de maneira defensiva, muitas vezes entendem pela carência de ação, por ausência de interesse de agir, quando não há o pedido administrativo. Então, a orientação mais segura e prática sempre é no sentido de realizar o requerimento administrativo alguns dias antes do vencimento do contrato.
Além disso, deve haver cuidado quanto à qualidade do pedido administrativo. Evidentemente, melhor um pedido feito de qualquer jeito, até mesmo por mensagem ou e-mail simples, do que não haver pedido algum. Contudo, sempre há o risco de eventualmente haver uma sentença no sentido de que as provas judiciais apresentadas não são as mesmas em quantidade e qualidade daquelas oferecidas no âmbito administrativo, não tendo, portanto, sido oportunizado à instituição financeira a chance de avaliar se estariam preenchidos os requisitos para a prorrogação da dívida nos moldes do MCR 6.2.4
Ressalvo novamente, entretanto, que se não houver tempo hábil para preparar robusta documentação para munir o pedido administrativo, melhor que esse seja apresentado da forma como for possível e depois procurar demonstrar em juízo eventuais motivos que tenham justificado a fragilidade probatória no pedido administrativo.
CONCLUSÃO
Acredito que com essas informações o produtor rural tenha condições de entender o básico de como funciona a possibilidade de prorrogação das dívidas rurais prevista no MCR (6.2.4), quais os fundamentos, os requisitos, a forma de comprovar e o cuidado com a formalização do requerimento administrativo antes do vencimento da dívida. A atividade rural é crucial não apenas para nosso país, mas para todo o mundo. Assim, deve haver um esforço coletivo para que os empreendimentos rurais sejam financeiramente equilibrados e produtivos.
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Autor:
Henrique Lima, advogado com atuação focada no atendimento a produtores rurais, empreendedores, empresas e grupos familiares com problemas jurídicos, especialmente em temas envolvendo direito agrário, contratual, dívidas bancárias, família, sucessões, tributário, direito e responsabilidade civil.
É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado (lato sensu) em direito constitucional, direito civil, direito de família e sucessões, direito constitucional, direito do trabalho e direito do consumidor. É sócio do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados que possui unidades em Curitiba-PR, São Paulo-SP e Campo Grande-MS, mas atende clientes em vários Estados brasileiros.