Setembro Amarelo: suicídio e consequências jurídicas
O mês de setembro é usado para a conscientização, prevenção e orientação da população acerca do suicídio. No dia 01.09.2019 o Deputado Estadual Herculano Borges presidiu audiência pública com essa pauta e contou com ampla participação de toda a sociedade. Isso demonstra que o tema, que ainda é tabu, tem cada vez mais despertado atenção. Aliás, o psiquiatra Dr. Augusto Cury, em palestra em Campo Grande, no dia 28.08.19, chamou atenção para o fato de os índices de suicídio terem disparado especialmente entre crianças e adolescentes.
Diante da relevância do assunto, pretendo trazer ao leitor algumas situações relacionadas ao suicídio e que são enfrentadas nos tribunais.
A) Seguro de vida
Durante muito tempo houve debates judiciais acerca da obrigação de a seguradora pagar indenização em caso de suicídio. Lembro-me que o ponto que se discutia era acerca da premeditação ou não.
Contudo, a partir do atual Código Civil, que iniciou vigência em janeiro de 2003, isso foi superado, pois o artigo 798 estabeleceu que “o beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato...”. Ou seja, usou um critério temporal objetivo que dispensa investigações acerca de premeditação ou mesmo se houve má-fé na contratação da apólice.
O Superior Tribunal de Justiça tem uma súmula (n. 610) onde confirma esse artigo e apenas ressalva o direito de o beneficiário receber a “devolução do montante da reserva técnica formada”, no caso de suicídio no prazo de dois anos do início do contrato de seguro.
B) Responsabilidade civil de estabelecimento de internação
Pessoas com problemas psiquiátricos podem necessitar de internação em clínicas especializadas, as quais, ao aceitarem o paciente, tornam-se responsáveis por sua vida, especialmente nos casos em que há histórico de tentativa de suicídio.
No Poder Judiciário há decisões condenam os hospitais e clínicas por negligencia e falta de vigilância, mas há também casos em que a responsabilidade é afastada. Tudo depende das circunstâncias e do histórico do paciente. Por exemplo, deixar sozinho por longo tempo um paciente que acabou de ser internado por tentar suicídio é, sem dúvidas, uma omissão condenável.
Vejamos uma ilustrativa decisão:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICA-HOSPITALAR. AÇÃO INDENIZATÓRIA. SUICIDIO DE PACIENTE INTERNADA EM CLÍNICA DE SAÚDE MENTAL DURANTE CRISE NA QUAL HAVIA TENTADO CEIFAR A PRÓPRIA VIDA. SUICÍDIO POR ENFORCAMENTO COM LENÇOL COMETIDO DENTRO DO QUARTO ONDE SE ENCONTRAVA SOZINHA POUCAS HORAS APÓS O INTERNAMENTO. RISCO DE SUICÍDIO EVIDENTE E DEVIDAMENTE ANOTADO NO PRONTUÁRIO. PACIENTE QUE SE ENCONTRAVA DESACOMPANHADA E SEM MEDICAÇÃO. EVIDENTE FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS CONFIGURADA. DANO MORAL EM FAVOR DE SEUS FILHOS. Quantum. MAJORAÇÃO. PROPORCIONALIDADE. HONORÁRIOS. MAJORAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-SE - AC: 00435395020178250001, Relator: Alberto Romeu Gouveia Leite, Data de Julgamento: 23/07/2019, 2ª CÂMARA CÍVEL)
C) Atropelamento
Situação muito comum nos tribunais é a de familiares de suicida que buscam indenização em face de quem teria sido o “responsável pelo atropelamento”. Em Estados como o de São Paulo, ainda são frequentes os casos de pessoas que se arremessam em frente a locomotivas de trem. Nesses casos, a Justiça costuma entender que a conduta da vítima afasta a responsabilidade civil.
Em outras palavras, se alguém se arremessa em frente a um veículo (carro, trem, etc.), ela se torna a única responsável por sua conduta, não cabendo qualquer indenização por danos morais ou materiais para os familiares do suicida.
Entretanto, vale a ressalva de que o ato suicida deve ficar seguramente comprovado, pois chega ser covardia atribuir a responsabilidade por um acidente fatal a pessoa que não mais está presente para se defender. Por isso, muitas alegações de que o pedestre “se chegou” na frente do veículo são rechaçadas em juízo.
D) Plano de saúde – Custo de internação
Outro problema que costuma ser enfrentado é com relação aos planos de saúde. São comuns situações como:
- recusa em custear mais de 30 dias de internação;
- recusa em reembolsar despesas alegando que é decorrência de depressão e que essa é preexistente ao contrato;
- recusa em aceitar internação em clínica mais indicada para o tratamento, sob a justificativa de que não é conveniada;
Enfim, são muitas as hipóteses e os prejudicados precisam ficar atentos para ofensas ao Código de Defesa do Consumidor. Perante o Poder Judiciário há muitas demandas relacionadas a esses e outros assuntos e há sempre um olhar atento em favor da vida.
PLANO DE SAÚDE – Tratamento psiquiátrico decorrente de depressão grave – Tentativa de suicídio - Situação de emergência caracterizada - Internação em clínica não credenciada – Negativa de cobertura - Inadmissibilidade – Incidência do Código de Defesa do Consumidor e da Lei nº 9.656/98 - Existência de cobertura para a doença – Hipótese em que não pode ser negada a cobertura de tratamento necessário para sanar os problemas de saúde de paciente cuja doença é coberta – Cobrança de coparticipação – Cláusula contratual em desconformidade com os requisitos exigidos pela Lei nº 9656/98 e pelo CDC - Abusividade reconhecida – Dever de custear integralmente o tratamento – Sentença mantida –– Recurso desprovido. (TJ-SP - AC: 10015917520188260704, Data de Publicação: 13/03/2019)
E) Suicídio de detento
Durante o período em que uma pessoa está “presa”, isto é, cumprindo pena em regime fechado, ela está sob a custódia do Estado, o qual se torna responsável pela integridade física do detento, devendo manter vigilância inclusive para evitar casos de suicídios.
O Poder Judiciário já se manifestou várias vezes no sentido de condenar o Estado a pagar indenizações (morais, materiais e pensão) em favor da família do detento que se suicida. Vejamos uma decisão do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SUICÍDIO. DETENTO. CADEIA PÚBLICA. PRISÃO PREVENTIVA. ROUBO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DANO MATERIAL. PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. 1. Trata-se de pedido de indenização por dano material e moral contra o Estado de São Paulo em decorrência de suposto suicídio de detento por autoenforcamento, ocorrido em cela da Delegacia de Investigações Gerais da cidade de Marília/SP. 2. O Superior Tribunal de Justiça sedimentou o entendimento de que a responsabilidade civil do Estado pela morte de detento em delegacia, presídio ou cadeia pública é objetiva, pois é dever do estado prestar vigilância e segurança aos presos sob sua custódia, portanto mostra-se equivocada a interpretação realizada pelo egrégio Tribunal bandeirante. 3. A melhor exegese da norma jurídica em comento é no sentido de que o nexo causal se estabelece entre o fato de o detento estar preso, sob proteção do Estado, e o seu subsequente falecimento. Não há necessidade de se inquirir sobre a existência de meios, pela Administração Pública, para evitar o ocorrido e, muito menos, se indagar sobre a negligência na custódia dos encarcerados. 4. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. (STJ - REsp: 1671569; DJe 30/06/2017)
F) Proventos integrais – Pensão – Benefício previdenciário
Indiretamente ainda podemos analisar impactos na pensão recebida do servidor público.
Se o suicídio foi desdobramento de uma doença psiquiátrica causada pelo trabalho, isto é, se for possível comprovar o nexo de causalidade entre o trabalho realizado e a doença psiquiátrica, por exemplo, uma depressão, síndrome do pânico, etc., e se o falecido era aposentado por invalidez com proventos proporcionais, é possível uma discussão judicial objetivando majorar a pensão que a família receberá.
A argumentação será no sentido de que a aposentadoria por invalidez deveria ter sido paga com proventos integrais, diante do nexo de causalidade com o trabalho, e, por isso, a pensão deverá ser majorada.
Em muitas carreiras do serviço público os problemas psiquiátricos são tão comuns que deveriam ter o nexo presumido. Policiais militares, agentes penitenciários e professores são apenas algumas delas.
Portanto, os beneficiários de pensão por morte que perderam o familiar em decorrência de suicídio precisam analisar com muita atenção o caso, pois pode ser possível uma revisão no valor dos proventos.
CONCLUSÃO
Esses são apenas alguns dos aspectos jurídicos envolvendo a triste situação de suicídio. Uma simples pesquisa na jurisprudência dos tribunais revela que esse tema é frequente e, por isso, precisa ser tratado com muita atenção e cuidado.
HENRIQUE LIMA
Advogado (www.henriquelima.com.br). Mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado em Direito Constitucional, Civil, do Consumidor, do Trabalho e de Família. Autor de livros e artigos, jurídicos e sobre temas diversos. Membro da Comissão Nacional de Direito do Consumidor do Conselho Federal da OAB (2019/2021). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5217644664058408