O vidro e o espelho contam a história do individualismo
Mais ou menos 26 milhões de anos atrás, alguma coisa aconteceu sobre as areias do deserto da Lybia, a região árida e incrivelmente seca do deserto do Saara. Não sabemos o que foi, mas sabemos que era muito quente. Grãos de sílica derreteram e se fundiram sob um calor intenso, de pelo menos mil graus Celsius. Quando esses grãos de areia superaquecidos resfriaram, uma extensão do deserto da Lybia estava revestido do que nós agora chamamos de vidro.
O escaravelho do Egito.
Cerca de dez mil anos atrás, alguém viajando por esse deserto deparou com um grande fragmento desse vidro. Ficou tão impressionado que o levou ao Egito, a capital do poder no mundo. Nesse EUA (ou China) do tempo das pirâmides, esse pedaço de vidro foi moldado e virou um escaravelho, um besouro. Essa lasca de silício fundido foi parar na câmara funerária de Tutancâmon. E se tornou imensamente famosa.
Império romano: transição de ornamento para tecnologia.
O vidro começou a fazer sua transição de ornamento para tecnologia avançada no auge do Império Romano. Surgiram os primeiros fabricantes de vidro. Tornaram o material mais resistente e menos turvo que o vidro forjado nas areias da Lybia. Construíram as primeiras janelas com vidro. O vinho passou a ser bebida valorizada quando os romanos passaram a servi-lo em recipientes semitransparentes e armazená-los em garrafas.
O saque de Constantinopla é uma ilha de Veneza.
O saque de Constatinopla, em 1.204, realizado pelos cruzados, cristãos matando cristãos, foi um daqueles históricos cataclismas que ecoam ondas de influência, repercutindo em todo o planeta. Desencadeou um evento em aparência menor, ignorado pela maioria dos historiadores. Uma pequena comunidade de fabricantes de vidro da Turquia, destruída pelos cruzados, foi se estabelecer em Veneza. Eram os melhores e mais avançados vidreiros do mundo. Transformaram o vidro em uma mercadoria de luxo. Mas como trabalhavam com fogo em altíssima temperatura, costumavam incendiar as casas de madeira da vizinhança. Veneza ainda não era de pedra. A administração da cidade fez um acordo com os vidreiros e os transferiu para uma ilha a 1,5 km de distância. Surgia Murano. Sem saber, os doges de Veneza tinham criado o principal centro de inovação da idade média, o vale do Silício daquele tempo.
Monges criam os óculos.
Murano passou a ser conhecida como Ilha do Vidro (continua sendo com descendentes diretos dos vidreiros que fugiram da Turquia). Depois de anos de tentativas e erros, o fabricante Angelo Barovier de Murano, usou alga marinha e manganês e adicionou esses ingredientes ao vidro derretido. Quando esfriou, tinha criado um tipo de vidro extraordinariamente claro. Barovier chamou-o de "cristallo". Era o cristal. Em seguida, os monges que copiavam manuscritos, por motivos óbvios, criaram os "roidi da ogli", os "discos para os olhos". Graças à semelhança com as lentilhas - "lens", em latim - esses discos vieram a se chamar "lentes". Criariam ainda o microscópio.
Os espelhos de Murano.
Em Murano, os fabricantes de vidro perceberam uma maneira de combinar seus vidros cristalinos com uma inovação na metalurgia, revestindo a parte de trás do vidro com uma mistura de estanho e mercúrio a fim de criar uma superfície brilhante e altamente reflexiva. Surgiram os espelhos. Foi uma revelação. Uma revolução. As pessoas nunca tinham visto suas próprias faces. O máximo era enxergar o próprio rosto em uma poça de água ou em metais polidos. Os espelhos pareciam mágicos. Surgiram rituais bizarros. Quase todos peregrinos levavam espelhos. Todos os príncipes criaram salões de espelhos. Entraram nos quartos. O mundo começou a girar em torno do indivíduo. Surgia o individualismo. As pessoas começaram a abandonar suas associações, seus grêmios de trabalho, seus príncipes..... passaram a se enxergar.