"Vende-se" no São Francisco anuncia fim de arquitetura original do bairro
Disponíveis para venda, casas antigas e típicas de época podem ser desfeitas com a constante modernização
Seja em madeira ou alvenaria, casas antigas no Bairro São Francisco marcam a história de Campo Grande a partir de seus telhados típicos de época, detalhes em varandas e os próprios desenhos e formatos das construções. Com a região passando há anos por um processo de modernização, as placas de “vende-se” seguem aumentando e, sem a garantia de que as construções serão mantidas, podem indicar um desaparecimento da arquitetura histórica.
Sem ser uma especificidade de Mato Grosso do Sul, o movimento de demolir casas antigas ou descaracterizá-las completamente para criação de imóveis comerciais é algo comum no mundo todo, como explica o historiador e arquiteto João Santos.
Por aqui, essa substituição pode ser vista tanto caminhando quanto observando um antes e depois de registros do Google Street View. Na Rua Rui Barbosa, por exemplo, duas casas que integravam a “cara” do bairro resistiram até 2011, mas foram demolidas e o terreno se tornou um estacionamento.
Conforme o arquiteto explica, além da substituição das casas, edifícios e móveis históricos, o próprio perfil de quem usa, mora e reside nessas regiões é alterado. “Então, o processo de gentrificação é quando a gente tem uma população mais pobre habitando uma região e de alguma forma empreendimentos, melhorias, aberturas de vias, construção de shoppings, todos esses setores que chegam nas regiões mais pobres, valorizam a área, o IPTU cresce, os mercadinhos são fechados e as pessoas acabam saindo dessas áreas, vendendo seus imóveis e indo para outras regiões mais distantes”.
Veja algumas das casas que estão com placas de "vende-se" na região do bairro São Francisco:
Confira a galeria de imagens:
Seguindo a fala de João, Odilon Ferreira Guimarães Filho, de 59 anos, conta que a contínua chegada de espaços empresariais no bairro tem feito com que haja uma sensação de sufoco. “Essa casa era da família da minha esposa, ficou para ela e a irmã. Nós viemos para cuidar há mais ou menos 9 anos e é complicado”.
Odilon comenta que após casas próximas serem adquiridas por empresas, sua família também passou a receber propostas. “Eles perguntam se a gente quer vender porque dos lados já compraram e acho que querem pegar essas casas e usar o terreno. E aqui está ficando difícil porque aumentou violência, você vai ficando isolado, tem a manutenção da casa, taxa de IPTU que é caro”.
Em seu caso, ainda sem definir se irá vender ou não a casa, o morador narra que não sabe o que irá acontecer se a família decidir sair da construção. E é essa dúvida no pós-venda que gera a possibilidade dos espaços desaparecerem, uma vez que não há mais o vínculo afetivo, mas sim o pensamento pragmático de uso do local.
Também notando a mudança dos espaços, Ozita Maurício Lobato, de 67 anos, narra que é apaixonada pela arquitetura histórica do bairro. “Eu fico morrendo de dó quando vejo que alguma casa antiga foi desfeita e aqui tem muita para vender”.
Ela mesma mora de aluguel em uma das casas antigas do bairro que está para vender na Rua Júlio Dittmar. “O problema é que vão fazendo reformas que as casas ficam todas parecidas. Não tem mais os detalhes na fachada, os desenhos em vitral”.
Concordando que é necessário realizar manutenções, Ozita comenta que as ações poderiam ser feitas preservando o que já existe.
Entre história e arquitetura
Retornando ao olhar de relação entre história e arquitetura, João comenta que nessas mudanças há uma questão relacionada ao pensamento cultural iniciado com a Revolução Industrial no Século XVIII.
“É o poder de novidade. Esse poder da novidade geralmente interfere no poder de antiguidade, no valor de antiguidade, e nos valores antigos mesmos, da própria residência antiga, do imóvel antigo ou de um imóvel de caráter histórico”, explica o arquiteto.
No caso, a fala não é sobre patrimônio cultural ou bens tombados, mas sim de edificações que possuem características, estilos e detalhes arquitetônicos do passado, como ele comenta. “E o poder de novidade é sempre isso, para o novo chegar, você tem que enterrar o velho, você substitui o velho. Isso foi muito comum durante a Revolução Industrial, depois até mesmo isso chegou até sendo base da própria disciplina do restauro e até mesmo de valorização do patrimônio cultural, para que essas trocas do novo pelo velho não ocorram de maneira tão avassaladora ou tão potente assim”.
Destacando a importância de mantermos o “rosto” histórico da cidade, ele narra que uma alternativa é pensar qual é o motivo do “velho” e do “novo” não poderem coexistir.
Uma edificação histórica, para ela existir, ela não precisa tomar lugar da edificação contemporânea e assim vice-versa. Eu falo muito até nos meus percursos de como que a cidade é um palimpsesto urbano. Palimpsesto é um pergaminho antigo no qual você escreve e você apaga aquele pergaminho. Você reescreve em cima, e quando você vai ver, está escrevendo uma história em cima de uma outra história. Então uma cidade enquanto palimpsesto tem esse mesmo sentido: as coisas podem coexistir, diz João.
Para ele, a coexistência dos estilos é interessante principalmente para mantermos a identidade da cidade. “Então, quando a gente está falando ali de edificações de cunho histórico, mesmo que elas não sejam tombadas, mesmo que elas não sejam declaradas como patrimônio cultural, de alguma forma elas fazem parte da história da nossa cidade, fazem parte da identidade da nossa cidade. Se a gente substituir todas as edificações antigas por edificações contemporâneas, a gente vai se transformar em qualquer cidade”.
E, se transformando nessa “cidade qualquer”, a própria linha história vai se desfazendo pouco a pouco. Ainda assim, João destaca que é necessária uma preservação e não um congelamento, até porque as próprias casas antigas podem sim ser adaptadas e se tornar comércios mantendo as características originais.
“Então acho que a gente tem que estar atento a isso, edificações históricas trazem identidade para uma cidade. E isso não quer dizer atraso, não quer dizer congelamento. Quer dizer um fator de identidade que deve ser preservado, valorizado e potencializado cada vez mais. A gente não precisa plastificar a cidade e transformar ela numa cidade qualquer, num não lugar”, pontua o arquiteto.
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