De berço fértil, escritores falam da influência dos pais e de Manoel de Barros
Mesa do “Do Risco ao Escrito”, com Pedro Gabriel (RJ) e Clarice Freire (PE) abriu a 1ª noite da Festa Literária do Sesc
A 1ª Festa Literária do Sesc começou ontem em Campo Grande com um mergulho na literatura durante a mesa “Do Risco ao Escrito”, com Pedro Gabriel (RJ) e Clarice Freire (PE). A programação está imperdível e acontece de forma simultânea à 2ª edição de Corumbá.
Admiradores, fãs e escritores aproveitaram o “intensivão” da nova geração de poetas, na primeira noite de FliSesc. Em meio a um furação de informações, quem participou conheceu de perto o trabalho de Clarice Freire e Pedro Gabriel, que apesar da pouca idade, tiraram dúvidas sobre a criação da poesia, influências e como envolver a juventude por meio da internet.
Formados em Publicidade e Propaganda, os dois escritores fazem trabalhos diferentes, mas se encontram quando o assunto é herança poética da família.
Autor dos romances “Eu Me Chamo Antônio”, “Segundo Eu Me Chamo Antônio” e o “Ilustre Poesia”, Pedro Gabriel ganhou fama devido aos textos e ilustrações produzidos em guardanapos. A pegada de “boteco” é um sucesso e, apesar de obras publicadas, suas criações originais somam milhares de repostes no Instagram.
Antes de falar das influências, Pedro contou um pouco da sua história e da introdução tardia à língua portuguesa. O escritor nasceu em Chade, antiga colônia francesa no meio da África, onde, além dos dialetos, a língua oficial era o francês. A única escola para estrangeiros tinha base francesa e até em casa, Pedro e os irmãos falavam o francês, mesmo sendo filhos de mãe brasileira e pai suíço.
Um pouco mais tarde, começou a se entreter com as imagens de Pequeno Príncipe e as aventuras de Tim Tim e, mesmo com o pai transferido para Cabo Verde, um arquipélago na África, onde se fala português de Portugal, a língua materna ainda não era falada em casa.
“Antes de entrar na escola na África minha mãe me alfabetizou, mas eu só fui voltar a ter contato com a língua materna aos 13 anos, quando vim para o Brasil e até conseguir ler sozinho um livro e entender as coisas eu já tinha 15 anos. Eu lembro até hoje que meu primeiro livro em português foi Capitães de Areia, de Jorge Amado”, lembra.
O publicitário, desenhista, escritor e poeta costuma dizer que suas influências partem dos pais. “Da minha mãe herdei a língua portuguesa, e do meu pai, o desenho. Meu pai sempre incentivou os filhos a desenvolver o lado criativo, então hoje quando faço um guardanapo que é uma linguagem que mistura a caligrafia e o desenho que preenche os espaços vazios do guardanapo, é como se fosse um encontro do meu pai e da minha mãe. Eu também sou apaixonado por Manoel de Barros, Paulo Leminski, Drummond, Mario Quintana. Depois que comecei a fazer os guardanapos, eles me levaram a buscar conhecimento e a me aprimorar no que eu era ignorante. O mundo inteiro se abriu quando comecei a me interessar e enxergar que era um caminho que eu queria seguir. Então tudo que eu li ou ouvi, me ajudaram a formar minhas ideias e me reconhecer como poeta, mesmo fora do padrão”, frisou.
Diferente de Pedro que se enxergou um poeta mais tarde, Clarice mostrava talento para a coisa, desde criança e em seguida em um blog. Com uma bagagem admirável da literatura, a escritora teve o primeiro contato com Manoel de Barros, na prateleira de casa.
“Eu tenho uma paixão louca por Manoel e é muito engraçada, a forma como me encontrei com ele, porque foi em casa e isso foi muito forte. É interessante algumas coisas do meu trabalho e do trabalho do Pedro é que são trabalhos diferentes, mas que se encontram. Assim como nossa história. Quando ele fala dos pais, chega a ser assustador, porque meu pais são minhas primeiras influências. Meu pai é escritor, diretor, roteirista de cinema, compositor e médico. Minha mãe é assistente social, mas ela desenha, absurdamente, bem. Então, minha lembrança da infância é que para brincar com a minha mãe eu estava sempre desenhando e para brincar com meu pai eu estava sempre escrevendo poesia”, lembra.
Com o pai muito amigo de Antônio Carlos Nóbrega, multiartista, cantor, bailarino e um dos fundadores do movimento Armorial, em Pernambuco, junto a Ariano Suassuna, Clarice sempre teve a presença do pai compondo na sala de casa. “Eu pedia para brincar também e eles diziam para eu terminar uma poesia e eu levava aquilo a sério. Meu sonho era que Nóbrega elogiasse a poesia, mas isso nunca aconteceu”, riu a escritora.
Outras grandes influências citadas por Clarice foi o primo Marcelino Freire, Ariano Suassuna, Clarice Lispector, Cecília Meireles e Adriana Falcão, mais contemporânea. “Na minha cabeça eu nunca seria tão boa quanto eles e demorei a entender que eu não precisava disso. Eu precisava ser boa quanto eu, eu precisava encontrar a minha voz. E para eu curar essa barreira eu comecei a mostrar para os dois tudo que eu fazia. Eu tremia e um dia mostrei todos meus cadernos a Marcelino e depois que ele leu disse que tudo aquilo precisava virar um livro. Isso aqui é bom. Quando ele disse isso, algo mudou em mim, pois eu acredito nele. Ariano Suassuna também foi grande influência. E foi ainda na adolescência que busquei o que as mulheres diziam, já que na escola só tinha Drummond”, pontuou.
Na parte visual, Clarice se declara fã do cineasta, produtor, roteirista, escritor, animador e desenhista norte-americano Tim Burton. “Ele tem uma melancolia doce”, cita.
Para quem quer começar a escrever, Clarice garante que a busca pela perfeição do texto ou poesia deve ser constante. “Eu fazia aulas de teatro para melhorar a timidez e meu professor tinha uma frase: tá bom, mas pode melhorar. Ele sempre repetia isso e dizia: parte do pressuposto que está ruim. E isso não é depreciativo, não. Saiba que a primeira obra não será Dom Quixote, o primeiro desenho não será a Monalisa”, pontua.
Influenciadores – Durante a interação com o público, formas de envolver a juventude na literatura vieram à tona. Para Clarice e Pedro, a internet é uma aliada na hora de garantir acesso à escrita e a literatura, já que os jovens estão lá (navegando) prontos para receber conteúdo.
“Nós valorizamos muito os trabalhos com educação. A gente falou da bagagem de casa, mas houve também a bagagem de professores que mostraram que o clássico era legal, que aquilo era bacana, que aquilo era possível de ser lido. A gente precisa lutar muito para valorizar a cultura na educação. Eu sei que tem sido um cenário bem mais complicado, mas é nessa hora que surgem coisas boas. Eu estava em um evento em Recife e, falando do tempo da Ditadura, lembramos o quanto de coisa linda surgiu naquele período tão duro. Temos de unir todas as forças para que esse trabalho de cultura nas escolas seja realizado", pontua.
Clarice admite o quão difícil é despertar o interesse na literatura a quem nunca teve a mesma oportunidade que ela, mas ressalta a importância de fomentar o assunto, principalmente, na internet. A escritora pontua a dificuldade do Brasil no fomento à cultura e admite que teve medo quando a irmã anunciou que seria musicista. ""É importante que o escritor esteja no espaço das escolas. Eu queria muito que na minha escola eu tivesse tido contato com escritores, mas a prioridade era matemática e o português. Temos duas ferramentas: primeiro a física, que é quando vamos ao lugar, e a ferramenta digital que é fantástica. Os jovens já estão lá, é só chegar neles", garante.
Com o mesmo pensamento, Pedro acrescentou a importância de adaptar os textos de acordo com as faixas etárias e do incentivo a leitura.
“Eu recebo diariamente mensagens de jovens que estão entrando no vestibular, que estão com dúvidas, falando sobre o texto que eu publiquei sobre o fato de ter mudado a vida daquele jovem, então quando você tem uma identificação muito forte com quem você admira, fica mais fácil o diálogo e acaba sendo uma porta de entrada para os autores que eu gosto. Muito desses jovens que falam comigo, talvez nunca tenham ouvido falar de Drummond, mas eu vou indicar a leitura de “Sentimento do Mundo”, “A rosa do Povo. Outra coisa é a adaptação do texto, para não assustar. Eu lembro quando era pequeno, que a poesia me assustava, eu achava que era uma impossível de alcançar, então acho que eu sempre tive um processo de afastamento da poesia e acho que só fui me interessar depois de adulto”, frisa.
Sobre o uso da internet, Pedro destaca uma situação interessante que envolveu a plataforma na periferia de Fortaleza. "Como a escola pública não tinha condição de me levar, eu fiz uma oficina por Skype. Isso é uma coisa que eu não conseguiria fazer se não fosse a internet. Eu também senti falta de um autor na minha escola, porque a gente sempre estuda pessoas que já morreram, como se todo mundo já tivesse morrido. Então, além da internet é preciso incentivar a leitura da literatura contemporânea brasileira.de Prosa a tirinha, qualquer contato com a arte e criatividade, vai expandir a cabeça da pessoa que tiver contato”, completa Pedro.
A girafa - Para manter as lembranças das raízes, Pedro e as irmãs foram representados pelos pais com animais africanos. A influência é usada até hoje em oficinas.
"Quando eu morava na África meus pais escolheram um animal para cada filho, eu recebi a girafa e minhas três irmãs, elefante, hipopótamo e um dromedário. Depois percebi que eles escolheram o animal certo com relação ao que eu resolvi fazer, que é desenho, poesia, literatura. Porque a girafa tem a cabeça nas nuvens, mas sempre está com as patas no chão. Ao mesmo tempo, a girafa tem as manchas no corpo como se fossem as tintas para desenhar. Recentemente, tive uma experiência com crianças de cinco anos, de uma escola em São Bernardo do Campo. Eu levei para eles a girafa. Para que eles entendessem poesia eu expliquei que eles teriam de ser mais girafas", conta.
A farmacêutica Isabela Correa Alcântara, de 26 anos, acompanha Pedro há cinco anos. Ela conheceu o trabalho do autor pela internet e, desde então, segue apaixonada pelas obras. “Eu conheci o trabalho de Pedro pelo Facebook da página eu me chamo Antônio e em 2014 eu fui à Bienal do livro em São Paulo. Tinha fila com senha enorme para ele assinar o livro que eu tinha. Eu conhecia a história dele pela internet, mas hoje foi a primeira vez que tinha tido a oportunidade de ouvi-lo”, conta.
Formada em Direito, Camila da Costa, de 24 anos, conheceu Clarice pelo Instagram e se emocionou em saber que a gentileza da autora extrapola o texto. Além disso, Camila confirma que Clarice foi a porta de entrada para outras autoras. “Eu conheci Clarisse pelo Instagram E estou tremendo. Você começa a ver o quanto ela é gentil não só pela poesia, mas pessoalmente também, então é muito emocionante ver pessoalmente. E comecei a ver o livro e pensei: caramba, ela é muito boa! Eu comecei a ver a literatura e a poesia por ela e antes eu não lia. Hoje ele citou algumas autoras, que eu também comecei a ler a partir dela. Estou muito feliz”, pontua Camila.
Trabalho dos escritores - Para quem não conhece o trabalho de Pedro, os três livros publicados em 2013, 2014 e 2016 são chamados por ele, de trilogia de pré-romance. Um quarto livro já está sendo produzido.
"Através do personagem Antônio eu consigo desdobrar minha sensibilidade, quebrar um pouco da timidez e romper o silêncio. São 100 guardanapos e você pode abrir em qualquer página como um verso do dia. Já no segundo livro é como se o personagem Antônio saísse um pouco da mesa do balcão de bar e migrasse ao mundo da poesia, com pequenas prosas. O mais recente é dividido em três partes, o primeiro é o espaço é roxo, a segunda é o azul e o terceiro é o chão, que e o vermelho. A ideia foi partir do mundo das ideias, migrando para o mar e indo pra terra. São os estágios da poesia. E essas três livros para me prepararam para o primeiro romance que eu quero publicar”, explica.
O livro mais marcante para Clarice foi inspirado no desejo de liberdade de uma noite de insônia. "Noites em claro é um livro que eu tenho um carinho muito especial. Quem nunca passou por uma noite. Eu ainda morava com meus pais no 32º andar e via a cidade toda. Sempre passava a madrugada querendo sair, mas em Forteleza não dá. Então essa personagem saía, quando eu não podia sair. Eu dividi o livro nas horas da madrugada, que começa meia noite até às cinco da manhã. Eu não sabia como iria encerrá-lo até ver que ele precisaria amanhecer. No fim do livro diz: foi um espanto olhar o dia e ver o quanto com ele me pareço, horas sou fria horas aqueço, passo voando e permaneço, algumas vezes sou noite e sempre amanheço. Noite em claro é um mergulho na noite da alma. Já meu primeiro livro foi dividido nas fases da lua. Os dois tem uma veia narrativa e as poesias aparecem ao longo da obra”, explica.
Os autores ressaltaram a importância da arte se posicionar, já que o artista não é somente um produtor de entretenimento.
A noite do primeiro dia de programação, se encerrou com show de Paula Mihran e Banda, que divulga seu mais novo trabalho: “Petróleo”, primeiro CD solo da cantora corumbaense que vive no estado de São Paulo há 18 anos.
Hoje - Nesta sexta-feira, 13, as atividades recomeçam às 15h com a Contação de Histórias “Arte Negus” (MS) no Átrio. Às 18h30, acontece a Conferência “A Caligrafia, a Escultura e a Engenharia dos Animais segundo Visconde de Taunay”, com Sérgio Medeiros.
Medeiros é o homenageado da primeira Festa Literária do Sesc em Campo Grande. Nascido em Bela Vista (MS), Sergio Medeiros é poeta, ensaísta, dramaturgo, artista plástico e tradutor, professor titular de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e colabora em jornais como "O Estado de S. Paulo" e "Folha de S. Paulo". Realizou pesquisas acadêmicas em Paris (França) e São Francisco (EUA).
Entre seus livros de poesia, destacam-se "A idolatria poética ou a febre de imagens" (Prêmio Biblioteca Nacional de melhor livro de poesia em 2017), "O sexo vegetal" (finalista do Prêmio Jabuti em 2010 e traduzido para o inglês), "Trio pagão" (2018), "Os caminhos e o rio" (2019) e "Caligrafias ameríndias" (2019), nos quais propõe uma escrita visual, inspirada na caligrafia e no caligrama.
Seus poemas já foram traduzidos para o espanhol e o italiano, além do inglês. Como tradutor, verteu o relato histórico "A retirada de Laguna" (escrito originalmente em francês), do Visconde de Taunay, e o poema maia-quiché "Popol Vuh", em colaboração com o professor inglês Gordon Brotherston, especialista em culturas mesoamericanas. Organizou o volume de contos indígenas amazônicos "Makunaíma e Jurupari".
Suas peças de teatro mais recentes estão reunidas no livro "As emas do general Stroessner". Escreveu livros para o público infantojuvenil, destacando-se "Contos de duendes e folhas secas", ambientado na fronteira do Brasil com o Paraguai. Ainda na sexta-feira, às 20h30, encerrando a programação do dia, haverá apresentação da musicista Letícia Dias, interpretando obras de Chico Buarque.
No último dia de FliSesc, sábado, 14, haverá intervenções lítero-poéticas com o grupo Michael Chekhov (MS), realizadas de hora em hora na Biblioteca. Das 13h30 às 17h30, tem oficina de contação de histórias com a Cia Arte Negus. Ainda no último dia, tem a vivência “Mercado Livreiro”, com Thiago Tizzot (PR), na sala multiuso. Às 17 horas contação de histórias com Alicce Oliveira (MT), 18h30 haverá a mesa “Atravessando Fronteiras: Palavras e Imagens”, com participação Eloar Guazelli (SP) e Hugo Canuto (BA), mediada por Fábio Quill.
No enceramento da programação, o grupo pernambucano “Em Canto e Poesia” une música e literatura, tendo a matriz oral da cantoria como verve central. As apresentações do grupo fazem reverência às origens sertanejas da região do Pajeú.
O Sesc Cultura está localizado na Avenida Afonso Pena, 2270.