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Artes

Helena Meirelles paria sozinha, não era mandada e tocava com chifre

Depois de ser parteira, benzedeira e lavadeira, musicista foi reconhecida só aos 67 anos

Por Aletheya Alves | 13/08/2024 06:10
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Helena se tornou reconhecida após toda uma vida. (Foto: Mário de Araújo)
Helena se tornou reconhecida após toda uma vida. (Foto: Mário de Araújo)

“Eu tenho sangue de tudo quanto é bicho, bicho perigoso, venenoso porque eu fui cobra, fui brava, fui perigosa”. O trecho, gravado no documentário ‘Dona Helena’, é do ícone sul-mato-grossense, Helena Meirelles, que completaria 100 anos nesta terça-feira (13) caso estivesse viva. Helena Pereira da Silva Meirelles precisou ser parteira, lavadeira, benzedeira e trabalhar em casas de prostituição enquanto sonhava (e lutava) para se dedicar à música. No caminho, a história é de “parir” 11 filhos sozinha, não aceitar ser mandada e tocar a viola com palhetas feitas com chifre.

É comum ver em textos sobre a sul-mato-grossense que narrar sobre sua vida é um desafio, isso porque a comprovação sobre o que realmente aconteceu ou deixou de acontecer fica em segundo plano. Helena faleceu em novembro de 2005, quando tinha 81 anos, e sobre sua história deixou depoimentos espalhados por entrevistas, apresentações e documentários a partir do momento em que, tardiamente, foi reconhecida.

Ao invés de buscarmos essas histórias nas bocas de outras pessoas, decidimos celebrar o centenário de dona Helena usando seus próprios depoimentos registrados com diferentes pessoas, em diferentes situações.

Vindo do início, o caminho é de que Helena nasceu na fazenda Jararaca, próximo a uma estrada que ligava Campo Grande à divisa do estado de São Paulo. Considerando as dimensões da área, é difícil definir em qual município ela se encaixa, mas há um certo consenso de que seria em Bataguassu.

Dama da Viola passou a vida encontrando formas de levar a música como profissão. (Foto: Mário de Araújo)
Dama da Viola passou a vida encontrando formas de levar a música como profissão. (Foto: Mário de Araújo)

Por ali, entre peões e violeiros, a então menina se encantou pelos sons das cordas, mas logo cedo teve o sofrimento como companheiro. Sofrimento esse que estaria presente em quase todas as décadas de sua vida, como contava ao explicar sobre sua história.

Enquanto as mãos pareciam querer buscar a viola, escutava os pais dizendo que música não era coisa de mulher. “Entrava por um ouvido e saía por outro”, disse a musicista no documentário.

Aos poucos, usava sua cabeça como gravador, como costumava dizer, para guardar o som da viola afinada pelos músicos e durante a passagem de um tio é que revelou seu talento. Desde então, começou a tocar com o irmão.

“Tocava com meu irmão a noite inteira em festa junina. [...] sabe o que eu ganhava? ganhava bolacha, ganhava doce, caramelo”. Mesmo assim, ainda se sentia presa e impedida, por isso resolveu se casar aos 16 anos, mas o problema só piorou.

Segundo a violeira, o marido era ciumento e não deixava que ela se conectasse com o instrumento. Por isso, se separou e, depois, casou-se novamente.

A segunda separação veio após desentendimentos e foi a partir daí que ela também deixou a família para trás. Em outro depoimento de ‘Dona Helena’, ela narra que pediu para a mãe cuidar dos três filhos.

Violeira manteve seu estilo até o fim de sua vida. (Foto: Reprodução)
Violeira manteve seu estilo até o fim de sua vida. (Foto: Reprodução)

“Falei para o motorista: ‘você me leva na zona?’ e ele ‘levo’. Naquela época, eu era nova ainda e ele me levou. Eu nem sabia o que era isso, não sabia o que fazer, não sabia nem beber”, descreveu Helena. É a partir daqui que seu trajeto passa a ser mais no interior de São Paulo do que em Mato Grosso do Sul com sua família passando anos sem saber de seu paradeiro.

Meirelles trabalhou nas casas de prostituição também tocando sua viola entre as cidades de Porto XV e Presidente Epitácio. Antes disso, na época de fazendas, já havia sido parteira, benzedeira e, anos depois, voltou ao Pantanal com seu terceiro marido, trabalhando lavando roupa de peões.

Salvei muito anjo, salvei muita mãe e muitos filhos de ficarem sem a mãe. Benzi muito, mas quando começaram a chamar eu de feiticeira, larguei mão, relatou em entrevista para a TV Globo, em Uberaba (Minas Gerais).

Além de fazer o parto para outras mulheres, ela contava que era a responsável pelos seus (e, ao todo, foram 11 filhos). “Eu mesma fazia o toque para ver a altura que tava, eu mesma via se ele tava perto ou longe, isso tudo eu mesma que fazia. Nunca deixei parteiro olhar minhas partes de mulher não”.

Mudança brusca

Voltando para sua trajetória, a grande mudança aconteceu quando reencontrou uma de suas irmãs que a convidou para morar em São Paulo. Por lá, encontrou o sobrinho, Mário de Araújo, que se tornaria seu produtor do primeiro disco, assim como o responsável por fazer com que Helena fosse reconhecida internacionalmente (antes mesmo de ser reconhecida no Brasil).

Palheta de Helena, feita com chifre, se destaca em poster da Guitar Player. (Foto: Reprodução)
Palheta de Helena, feita com chifre, se destaca em poster da Guitar Player. (Foto: Reprodução)

Dona Helena tocava viola, mas não tinha absolutamente nada gravado e, apesar da técnica, sua idade já era um empecilho, como relatou o sobrinho em entrevista. Somando seu jeito de falar, a idade e forma de se vestir, Helena não era vista como boa o suficiente para mídia. Isso até a revista “Guitar Player” fazer uma matéria sobre ela.

Isso aconteceu após Mário gravar uma fita simples de Helena e enviar uma foto e sua palheta feita de chifre de boi para os editores. Foi assim que a sul-mato-grossense ganhou espaço entre os 100 melhores guitarristas do mundo, ao lado de Roger Water e Eric Clapton.

Nem mesmo Helena parecia acreditar nas mudanças de rumo que a vida teve já após mais de 60 anos vividos. Disse, durante entrevista a Dainara Toffoli (diretora de Dona Helena), que sua história com a música era algo de Deus, algo que ele queria porque essa era a única explicação possível.

“O pessoal começou a me chamar de madame para por no carro, pegava minha mão, abria a porta e eu falei que não queria que me chamasse de madame porque eu me conheço ainda como uma mulher pé no chão do Mato Grosso do Sul”.

E, realmente, é intenso pensar que a mulher precisou enfrentar a própria família, a falta de renda e todo um cenário que ia contra ela até chegar na terceira idade antes de receber a atenção que deveria ter sido dada lá no início.

Toco desde os nove anos de idade, tô com 71, quantos anos faz que toco violão. [...] essas pessoas que aprendi a tocar já morreram e não existe nem osso mais”, disse durante o “Canta América”, em 1996, conforme registro da TVE RS.

Helena fez questão de continuar trabalhando com sua música e dizia que não imaginava se tornar artista, pensava que seguiria tocando “à toa”. Mas, no fim, conseguiu o sucesso tardio e fez prevalecer o que queria desde o início: se conectar com a viola e não ser mandada por ninguém.

“Eu queria ser eu, como sou até hoje, sou eu e só Deus, ninguém mais para me escorar e falar que manda em mim. Não admito ninguém mandar em mim, sou dona do meu nariz, dona da minha direção. Deus me deu isso e com isso vou morrer”, relatou no documentário.

Honrando sua promessa a si mesma, não abandonou a viola e faleceu aos 81 anos vítima de uma parada cardiorrespiratória enquanto lidava com um quadro de pneumonia crônica.

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