Acidente matou mãe que nunca viu Gustavo andar e deixou luta de anos como legado
O maior medo de pais de crianças que dependem de cuidados é partir antes deles. Gustavo ficou sem pai e mãe num ano só.
Márcia tinha um "acordo" com Deus. O combinado, narrado à professora do filho no dia do velório do marido e pai de Gustavo era de que ela não iria embora daqui enquanto o menino não tivesse o mínimo de independência. Gustavo, o filho, tem 11 anos, nasceu com paralisia cerebral e desde então, a vida e a luta de Márcia se resumiam aos olhos dele. A forma como mãe e filho se comunicavam.
"Não vou morrer enquanto meu filho não conseguir andar e comer com a própria mão". As frases repetidas hoje por Aurenice, a professora, foram faladas em agosto. Quatro meses depois, Márcia Lima também se foi, aos 42 anos, vítima de um acidente de carro.
Não tem quem não tenha convivido com ela que não reafirme a bandeira pela qual a mãe lutou. Márcia brigava na Apae, peitava de vereador a governador, tudo pelos direitos do menino. Exigia cadeiras de rodas melhores e quando enfim recebeu uma boa e pode afirmar que por aquilo não brigaria mais, se despediu.
Na semana passada o Campo Grande News noticiou o acidente que matou Márcia, a mãe, o irmão e uma sobrinha. A família estava num Uno que bateu de frente com um caminhão quando voltavam de Ponta Porã para a Capital. Em agosto, a morte do pai de Gustavo também foi notícia, Odair Soares foi espancado até a morte numa briga de bar, no bairro Guanandi.
Hoje, Gustavo é quem motiva a reportagem, porque nele vive um pouco da mãe que se dedicou tanto a vê-lo sorrir, andar e comer sozinho.
O menino estuda desde o 1º ano na Escola Municipal Wilson Taveira Rosalino, no bairro Aero Rancho, em Campo Grande e já passou para o 4º ano. Na escola, o lamento pela morte é generalizado.
Como a cadeira de rodas estava quebrada, desde a semana passada Gustavo não comparece às aulas. A mãe tinha ido atrás de outra, mas não deu tempo de levá-lo para o colégio com a nova. "Ela vivia em função do filho. Inclusive chamava ele de 'minha vida'", conta a auxiliar pedadógica, Aurenice de Lima Vale, de 50 anos, que acompanhava diariamente as aulas com ele.
A rotina era sempre a mesma dos dois. De manhã, Márcia levava o filho para os atendimentos na Apae e à tarde, era hora de Gustavo ir para os estudos. Como mãe de aluno, era muito parceira e também bem próxima das professoras e direção.
"No dia em que o pai morreu, fui ao velório e depois à casa dela. Falei que naquele caso não conseguia encontrar nada de bom para falar e foi quando ela falou do combinado e que não se preocupava, porque pedia para Deus não morrer enquanto 'meu filho não conseguir andar e comer com a própria mão'", reproduz a auxiliar.
Gustavo é totalmente dependente de cuidados até para se alimentar. Não fala, não anda e não tem controle nem do pescoço e do tronco e apenas movimentos amplos com os braços. A família afirma que uma das explicações para a paralisia foi a demora no parto. A mãe chegou a entrar com uma ação contra o Estado, ganhou, mas nunca recebeu a indenização que já tinha destino: fazer da casa um espaço adaptado para as necessidades do filho.
O enterro foi em Rio Verde de Mato Grosso e de lá que o Lado B conversa, por telefone, com os familiares.
"Ela foi uma heroína. Brigou com céu e a terra. Governador e deputado", conta o irmão, Nei Pereira Lima, de 37 anos. Caçula, ele diz que sempre viu em Márcia uma mulher guerreira. "Sabe galinha choca? Que briga por causa dos filhos? Ela vivia e zelava pela vida do Gustavo. Se dedicou durante 11 anos a defender a causa do filho desde calçadas, acessos, à liberdade dele", descreve.
A falta de conscientização e até mesmo de empatia dos governantes era o que mais indignava a Márcia mãe. "Só quem tem filho especial sabe. O sonho dela e ele vai acontecer, é de ver o filho andando. Ela saiu, mas vou realizá-lo até o último dia da minha vida", prometeu Nei.
Fora Gustavo, ainda ficaram Matheus, de 16 anos e Eleonora, de 8. Márcia também criou duas enteadas. Mas o menino que, por requerer mais tempo dela, dispensa hoje a maior preocupação. "Ele fala com os olhos. Quem convive com ele tem a capacidade de entender. A Márcia era tão guerreira que eu senti que quando o marido morreu, ela deu uma esmorecida, mas pelo filho arrancava força de onde não tinha", relata Nei. Na família, até o momento é certo que ele e a esposa quem vão ficar com a tutela de Gustavo e dividir os cuidados com os irmãos, em Campo Grande.
Assim como fizeram quando o pai morreu, Gustavo também viu o caixão de Márcia, que foi lacrado e fotos dela. "Mostramos e ele viu também todo o movimento. O cérebro dele é normal e a capacidade de pensar muito rápida. Tem que mostrar, mas é difícil para a gente entender a reação dele, mas percebe que está esperando, como se a mãe estivesse viajando", acredita Nei.
Da luta surgiram grandes amizades, como Grazianny Farias Rezende, de 35 anos, "colega" de corredor da Apae. Também mãe de um menino que pede maiores cuidados, Grazi e Márcia se falavam todos os dias e trocavam forças através de mensagens. "Até a última que ela me mandou era muito linda, dizia sobre não deixar as coisas para depois", recorda.
As cenas que passaram juntas ao longo dos últimos quatro anos vem à memória de Grazianny junto das lágrimas. "Nós duas estávamos lutando pelas cadeiras para os nossos filhos. Elas vinham erradas, estavam machucando as crianças e segunda agora, passada, ela agradeceu a todos porque tinha vindo a certa e disse que nunca mais ia brigar com ninguém por causa da cadeira. Quinta, ela se foi...", narra a amiga.
As brigas, a perseverança e a fé de que um dia as coisas iam melhorar, foram os maiores legados deixados no filho e que se espalharam entre quem a conheceu.
"Ela não tinha receio de dizer, de falar o que tinha que falar. Eu sempre falei que queria ser igual ela".