Já pensou se o português morresse? Em MS, luta por língua é diária
Em todo o Brasil são faladas mais de 100 línguas indígenas, sendo que muitas correm risco de desaparecer
Pela 1ª vez, o Museu da Língua Portuguesa criou uma exposição sobre línguas indígenas destacando a importância de seu reconhecimento e preservação. Em Mato Grosso do Sul, pelo menos cinco conjuntos de famílias linguísticas foram identificados e quem trabalha para manter suas palavras vivas garante que a luta é diária.
Localizado em São Paulo, o museu criou uma visita completa virtual (veja clicando aqui) para alcançar mais pessoas. Reforçando que mais de 175 línguas indígenas são faladas no Brasil, pelo menos 40 estão em perigo de desaparecimento.
Então, surge a questão: já pensou se o português morresse? Em todo o Brasil, a preocupação com as línguas indígenas segue e vive essa lógica.
Em mapas inéditos que abrangem todo o País, produzidos para a exposição, foram identificados cinco troncos linguísticos em Mato Grosso do Sul. Sendo eles Aruak, Zamuco, Guaikuru, Tupi e Macro-Jê, a partir desses troncos é que derivam línguas específicas de cada etnia como terena e kaiowá.
Assim como a preocupação com a preservação das línguas é destacada nacionalmente pelo museu, quem luta todos os dias para manter sua cultura viva em MS reforça a importância de manter sua história viva.
Professora terena na Aldeia Cachoeirinha, Maiza Antonio explica que além do desconhecimento sobre os povos indígenas e o preconceito, a própria forma de entender a língua precisa ser repensada.
“A língua não é só o que pensamos ser a escrita. A língua é a dança, é estar na nossa cultura, no nosso artesanato, no nosso colar. Os nossos contos estão em um colar, em uma cerâmica”, introduz a professora.
Integrando o Ipedi (Instituto de Pesquisa e Diversidade Intercultural), Maiza exemplifica o cenário de preocupação dizendo que nas pesquisas é possível notar um processo de mudança da língua terena. “A passagem da língua terena não está sendo mais colocada como prioridade para os pais de hoje, da sociedade de hoje. Isso não começou somente agora nos séculos XX ou XXI, mas sim até antes disso porque nossos pais tinham medo dos purutuye, que é o falante da língua portuguesa. E hoje a língua terena está ameaçada”.
De acordo com a professora, o medo em falar a língua terena acabou se transformando em um receio com a própria necessidade do uso. “A maior preocupação dos anciões é a questão da nossa sobrevivência no mundo acadêmico. Então, eles preferiram falar conosco na língua portuguesa. Eles visavam muito isso, essa questão da primeira língua e depois a língua terena”.
Para Maiza, a mudança não começa apenas no período escolar, mas sim desde o momento da amamentação. E, além da passagem da língua para os descendentes, ela comenta que ainda hoje há quem não pense sobre a existência de povos indígenas por todo o Brasil.
Contando sobre uma experiência, a professora relembra de uma visita feita ao próprio Museu da Língua Portuguesa em que foi surpreendida por um homem branco. Ela detalha que estava conversando com outros colegas acadêmicos quando foram questionados.
“Ele chega e fala ‘que língua que vocês falam?’, nós respondemos que somos indígenas, ‘e índio existe aqui, num museu?’. Então aquele impacto aconteceu, foi aquela tiragem de foto, essas coisas. Perguntava se a gente vivia em oca mesmo, essas questões de caça e de pesca, como existem outros irmãos que ainda vivem e são isolados”, explica.
E, tentando mudar o desconhecimento e manter a permanência da língua terena em seu trabalho, a professora completa que hoje se dedica à Educação Infantil. Além das aulas em si, materiais didáticos em terena têm sido produzidos em conjunto ao Ipedi para não deixar que as palavras, as danças, os artesanatos e a cultura como um todo não desapareçam.
Revitalização da língua
Assim como a professora Maiza detalhou sobre o processo educacional, a liderança indígena e professora Evanilda Rodrigues conta que na Aldeia Passarinho há um movimento semelhante.
“Hoje sou professora na minha comunidade, estudei para atender a necessidade de também preservar a cultura e língua do meu povo. Estamos no processo de revitalização da língua com os professores, então ensino a dança tradicional e os artesanatos”.
Para ela, independente de qualquer situação, a dificuldade sempre irá existir quando o assunto envolver uma cultura que vai se perdendo. Mas, insistindo na educação, ela pontua que os educadores indígenas trabalham o tempo todo para ter uma escola viva em cultura.
Outro ponto é que, para Evanilda, o preconceito histórico afeta diretamente cada cultura. Assim, a luta não é apenas dentro das comunidades, mas nos territórios como um todo.
Extinção, pesquisas e políticas públicas
Presidente do Ipedi e técnica na área de línguas indígenas na SED-MS (Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul), a linguista Denise Silva explica que hoje Mato Grosso do Sul possui 7 línguas indígenas identificadas. Dessas, três estão seriamente ameaçadas.
"Temos três línguas com os últimos falantes, sendo a guató em Corumbá, kinikinau em Miranda e Porto Murtinho, além da língua ofaié em Brasilândia. As outras também correm algum risco de tipo de extinção, mas estão em uma situação um pouco melhor por ter número maior de falantes", detalha Denise.
Conforme explicado pela linguista, além do número de falantes, existem outros indicativos além do número de falantes. "Isso porque a presença do português tanto na escola quanto na comunidade acaba fazendo com que a língua materna seja deixada de lada".
Sabendo do perigo, ela comenta que há planos de trabalho envolvendo instituições, pesquisadores e comunidades para desenvolver ações preventivas relacionadas às línguas e das próprias culturas.
Como relatado pelas professoras indígenas, Denise também pontua que o mito do Brasil ser um país monolíngue realmente existe. "Há um total desconhecimento dessa diversidade, um silenciamento disso. Como aconteceu no Enem, por exemplo, com uma surpresa sobre a temática de comunidades tradicionais. A maioria da população desconhece essas comunidades tradicionais".
"No entanto, no léxico da língua portuguesa falada no Brasil muitas palavras para fauna, flora, nomes de cidades, de rios são palavras de origem indígena. São principalmente das línguas de base tupi. Então, há um preconceito e esse preconceito acaba fazendo com que essas línguas não tenham seu lugar de destaque", explica Denise.
Outro ponto relatado pela linguista é que além das línguas indígenas faladas, também existem línguas indígenas de sinais. "Um exemplo é o povo terena que possui uma língua terena de sinais e que não tem nada a ver com Libras".
Pensando sobre todo esse tema e as problemáticas envolvidas, Denise comenta que há grupos de trabalhos em vários níveis para pensar políticas públicas. "Em 2022, teve início a década internacional das línguas indígenas. É um movimento mundial de salvaguarda dessas línguas no mundo. Atualmente, há estudos que apontam que temos 6 mil línguas e que essa perda linguística é maior do que a perda biológica".
Em Mato Grosso do Sul, a presidente do Ipedi comenta que além do próprio Ipedi, a SED elaborou um plano estadual para os trabalhos com as línguas indígenas. "Tem como intuito identificar a diversidade linguística, a presença na escola, verificação de materiais didáticos e a própria discussão e implementação de políticas públicas".
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