Na agonia do Rio Taquari, gente vira espécie em extinção na Nhecolândia
Calha antiga já não vê água e colonos começam a deixar a região em busca de área para plantar
Na sabedoria popular do pantaneiro, o imenso cupinzeiro à beira do leito seco, onde até o ano passado corria o Rio Taquari, é mau presságio. Se o cupim fez morada, é porque a água não vai voltar.
O que sobrou do Taquari se aproxima do encontro com o Rio Paraguai, no Pantanal da Nhecolândia. Cerca de 150 quilômetros no sentido oeste separam o chamado Arrombado Zé da Costa da Boca do Caronal, ponto em que as águas mudaram de curso no ápice do processo de assoreamento do rio.
É nos arredores do Zé da Costa, onde o Taquari também extravasou, que fica a Fazenda São Francisco. O cupinzeiro repousa a poucos metros do porto, cuja madeira pintada em preto vibrante acusa a construção recente na beira da calha do rio.
Funcionário da fazenda, Ricardo França, 67 anos, conta que até o início do ano ainda era possível navegar por ali, com barco à motor de popa ou rabeta. Acostumado com água farta da vida de pescador pelos rios da planície pantaneira, hoje França é todo lamento.
“Isso aqui não é mais Pantanal. É o que sobrou. Pode falar que nós estamos no Ceará, no Nordeste, de tão seco”, diz, enquanto a costela assada para o almoço defuma todo o retiro da fazenda, no fim da manhã de quarta-feira (30).
A região, distante aproximadamente 80 quilômetros da zona urbana de Corumbá, é rodeada por colônias, formadas no entorno dos desmembramentos do Rio Taquari. Bracinho, São Domingos e Corixão são algumas das comunidades.
Onde a água parou de correr, o cenário é de abandono ou de desespero, segundo os relatos que chegam aos peões da São Francisco.
Criado no inundado Pantanal do Payaguás, Felipe Lugo da Silva, 26, narra que a seca provocou o êxodo de colonos. Alguns partiram para as cidades, Coxim, Corumbá, até Campo Grande, com esperança de melhor sorte. Outros tentam sobreviver de bicos nas fazendas de gado da região.
Quem resiste nas comunidades hoje, vive da água parada que sobrou da cheia ou de precárias cacimbas. Antes bases de sustento dos colonos, as plantações de banana e laranja hoje são inviáveis.
Os retirantes das colônias tomam o campo da fazenda para deixar a região. Não existem estradas, apenas trilhas. Sem água no rio, o isolamento dos "taquarizanos" da Nhecolândia fica ainda mais evidente.
Causa - Entusiasta pela conservação do Rio Taquari e à frente do Instituto Agwa, o advogado Nelson Araújo Filho fica semana sim, semana também no Pantanal. Seu palpite para a seca no braço do Taquari é a estiagem acima do normal deste ano.
Para ele, o banco de areia que salta na Boca do Caronal pode estar freando ainda mais o pulso das águas em direção à calha antiga.
Conforme último boletim hidrológico da CRPM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), o nível do Taquari em Coxim chegou a 3,90 metros no dia 25 de outubro, meio metro a menos que os 4,41 m registrados no mesmo dia de 2018.
O pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Carlos Padovani, aponta para duas variáveis que podem ter interrompido o fluxo de água.
A primeira é a mudança de rumo do rio a partir da Boca do Caronal. “Isso é resultado de um processo de várias décadas, quando o rio começa a divergir para o Payaguás”.
Com o surgimento do Arrombado Zé da Costa, na década de 1990, o maior volume do Taquari seguiu novo leito em direção ao Rio Negrinho e diminuiu a vazão da calha que desemboca direto no Paraguai, próximo ao Porto da Manga - mesma calha que, até o ano passado, recebia pulsos de água e abastecia colonos e fazendeiros da região.
“Já tinha só um pouquinho de água, estava minguando, cada vez mais assoreado. Agora praticamente todo o Taquari está correndo para o Payaguás”, avalia o pesquisador. Conforme Padovani, o período da cheia pode fazer com que o Taquari volte a abastecer o leito mais antigo.
Sobrevoo - A reportagem do Campo Grande News chegou à Fazenda São Francisco de avião. O local foi a última parada do roteiro de duas horas e meia de voo entre Campo Grande e a propriedade.
No caminho, ficam para trás os rios Aquidauana, Taboco e Negro. A paisagem acidentada muda a partir da Serra de Maracaju, fronteira leste do Pantanal, e dá lugar ao mundão de planície. Do alto, os campos de pasto e áreas de vegetação parecem rabiscados pelas vazantes.
O Rio Taquari surge serpenteando no horizonte. Com banco de areia saliente na estação seca, a Boca do Caronal divide o curso d´água em dois.
A mão que desviou do curso antigo se multiplica por incontáveis tentáculos, que, mais à frente, nutrem o Payaguás do Xarayés e seus 1,3 milhão de hectares inundados.
A água que expulsou gado e gente da região também apodreceu as árvores acostumadas com alagamentos periódicos.
A matéria em decomposição dá o tom de cinza do painel, dominado pelo verde da vegetação adaptada. O marrom dos sedimentos que escurecem o rio são trocados pelo azul do lago “filtrado”.
Ao levantar voo para retornar a Campo Grande, o leito antigo que corria em direção ao Rio Paraguai depois do Arrombado Zé da Costa corta em bege a mata ciliar. O rasgo de areia remete aos contrastes ambientais e sociais ao longo dos 800 quilômetros de Taquari, desde o extremo sul de Mato Grosso.
Saída - O diagnóstico de pesquisadores aponta para má utilização do solo pela agropecuária na região pantaneira a partir da década de 1970, fator que acelerou o processo de assoreamento do Rio Taquari e influenciou para as mudanças de leito.
Em junho deste ano, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, anunciou a liberação de R$ 100 milhões para a recuperação do rio. A verba ainda carece de projeto para ser aplicada.
Quem perdeu suas terras para as águas do Taquari chama os arrombamentos de “desastre”. Correntes mais recentes de pensamento sinalizam para a possibilidade de exploração turística do Payaguás do Xarayés.
Enquanto isso, o Rio Taquari mantém seu curso, ora paciente, ora instável, e resiste contra a influência humana e as transformações da natureza.