Ele partiu em 1967, mas o amor por Campo Grande se atreve ao tempo e aos mil km de distância
Foi um tempo fabuloso para o menino Sílvio. Cidade “cosmopolita”, com cerca de 70 mil almas nos últimos suspiros da década de 50, a Campo Grande de outrora faz morada no seu coração, se atrevendo ao tempo e ao espaço. Mesmo depois de 54 anos e a mil quilômetros de distância, basta fechar os olhos, para ele descrever a cidade de sua meninice. A geografia da saudade começa pela Vila Carvalho, o bairro que hoje, é sinônimo de Carnaval.
Silvio Roberto dos Santos, 70 anos, que nos conta sua história direto de Mauá (São Paulo), morava na última casa da Rua Santo Antônio. A via de chão batido era o endereço do menino nascido em Getulina (interior de SP) e que aos cinco anos – em companhia do pai, mãe e quatro irmãos – conheceu a tal Campo Grande.
“Avós e tios moravam em Campo Grande. Então, viemos para cá. Era chão puro. Inclusive, era um bairro bem simples. Na Rua Santo Antônio, tinha a marcenaria do senhor Ramon, que era casado com a dona Paulina. Na rua de cima, tinha a serraria do meu avô Ernestino Pereira Lima. A família Sodré tinha um mercado na vila também. Eram pessoas do bem, todos gostavam deles. Na esquina de casa, tinha o bolicho do senhor Joaquim. Naquela época, não existia tanta maldade”, narra, saudoso.
Em frente à casa da família, uma produtiva roça de mandioca virava da mistura do almoço ao bolo do lanche da tarde. O leite vinha in natura, distribuído pelo leiteiro.
De casa, também acompanhava o vai e vem das boiadas. “Só tenho lembranças boas. Eu saí de Campo Grande, mas a cidade ficou dentro de mim”.
Em 2021, quando a cidade comemora 122 anos, a Rua Santo Antônio tem perfil residencial e não mais ali caberia uma roça de mandioca. Resta somente um terreno não edificado.
O dicionário amoroso de Silvio tem A de Alhambra, o cinema em que assistia ao filme do Zorro; C de Comercial, o time de futebol do qual foi cobrador na adolescência; I de Irmã Sebastiana, a “freira brava, pequenina e muito sábia” do colégio atrás da igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro; P de Primavera, time de futebol da Vila Carvalho; S de Sabino Presa, o locutor de rádio e T de Tachinha, um dos melhores jogadores que já viu em campo.
É preciso ainda menção especial ao L de Lacerdinha, apelido dado ao mosquitinho que, sem cerimônia, entrava nos olhos quando andava de bicicleta. “Não sei se era porque tinham muitas árvores na cidade, mas quando o Lacerdinha entrava nos olhos, ardia muito, era fogo”.
A partir dos 14 anos, o adolescente Silvio começou a trabalhar. Um dos serviços era ser cobrador do Comercial, que vendeu títulos, com pagamento mensal, para construção de estádio.
“Logo cedo, me tornei um trabalhador em Campo Grande. Trabalhei em posto de gasolina, na Calógeras, onde era ajudante de lavador de carros. Trabalhei num açougue do Mercado Municipal. O box era de uma pessoa maravilhosa, chamada Milton, que vivia cantando”.
O último emprego em terras campo-grandenses foi a farmácia Dom Aquino. Em 1967, a convite de um tio, foi embora para São Paulo. “Na mesma semana que cheguei, já comecei a trabalhar na Porcelana Schmidt, onde fique por três anos. Depois, entrei na Volkswagen do Brasil, onde fiquei 30 anos e me aposentei”.
“Um lugar bom, onde o presente é o futuro”
Testemunho sobre a cidade no final da década de 50 pode ser colhido no Perfil Socioeconômico de Campo Grande, divulgado pela Planurb (Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano).
Em 26 de agosto de 1959, o cronista Valério D’Almeida registrou: “Com população cosmopolita de setenta mil almas, sede da Região Militar, Base Aérea, Diretoria dos Correios e Telégrafos, duas exatorias federais [equivalente hoje, a posto da Receita Federal], inúmeras fábricas, cinco milhões de cafeeiros, ornam-lhe a magnificência de cidade dinâmica e moderna os melhores prédios de cimento armado desta latitude, de par com abastecimento de água potável de primeira ordem, luz em abundância e uma rede de esgoto irrepreensível”.
Publicações do jornal Correio do Estado jogam luzes sobre a cidade, no fim da década de 60, quando Sílvio partiu. No aniversário de 1966, Campo Grande foi festejada em números.
Era o tempo de 120 mil habitantes (atualmente, a cidade tem 906 mil moradores), do prefeito Antônio Mendes Canale (que hoje, dá nome à rodoviária da cidade), sete mil ligações de água, seis mil linhas telefônicas (os números tinham apenas quatro dígitos) e cinco hotéis de destaque. “Um lugar bom, onde o futuro é presente”, dizia o jornal. A cidade pretendia, por exemplo, chegar a 10 mil linhas telefônicas até 1969.
Já dados econômicos, buscavam seduzir investidores. No ano de 1966, a agência do Banco do Brasil era a 25ª maior em movimento de todo País. Por onde, no mês de julho daquele ano, passaram 53 mil cheques, com valor de 34 bilhões de cruzeiros.
Notícias da sociedade nos chegam pelo relato de Gabriel Papazian, publicado no jornal Correio do Estado. Ele traça paralelo entre Cuiabá (capital do Mato Grosso uno) e Campo Grande.
“A sociedade campograndense é ‘fechada’, muito diferente da nossa. Isso talvez seja compreensível por causa da formação heterogênea do povo da cidade Morena. Grande parte da população, calculadamente 60 porcento é de gente de fora”.
Noutro trecho, credita parte do estilo fechado dos moradores de Campo Grande, como recurso para se proteger de vigaristas e enxerga na elegância das moradoras a dinheiro farto.
“As mulheres campograndenses se maquilam muito bem e se vestem de maneira primorosa. Por certo a elegância feminina generalizada é reflexo da riqueza da cidade, pois se as mulheres podem se trajar e apresentar de maneira tal é porque o dinheiro corre abundantemente”.