Uma história real de quando viajar não era apenas virtual
As manchetes dos últimos dias dando conta de que a Alemanha está com o coronavírus sob controle são animadoras. Reforçam a ideia de que em breve poderemos sair de casa para passear, viajar, enfim. Mas anarquista convicto que sempre fui, logo desconfiei (e ainda desconfio) que pudesse ser mais uma peça nesta guerra ideológica que move a pandemia no Brasil.
A Alemanha é apontada como modelo de uma campanha mundial contra a propagação do coronavírus em que uma das principais recomendações de proteção, além do isolamento social, é não espirrar em público. Mas acontece que para o povo alemão o ato de assoar o nariz em alto e bom som em lugares públicos - ruas, praças, ônibus, trens, metrôs e até mesmo à mesa em família ou nos restaurantes e bares -, é mais do que normal, é cultural.
Então, lembrei de uma viagem que fiz nos meses de janeiro e fevereiro de 2008 por várias cidades da Alemanha. Pude ver que todo alemão que se preza sempre tem no seu alcance um pacote de lencinhos de papel, que lá eles chamam de “taschentuch”.
São papéis tipo o nosso guardanapo que podem ser usados a qualquer momento, não importa onde. E eles assoam o nariz com força, não uma só vez, mas duas, três, quatro vezes, até ter certeza de que saiu todo o catarro.
Já havia estado na Alemanha antes, mas nunca tinha prestado atenção nisso. Nesta viagem, a minha estadia no país começou por Munique, onde desembarquei na noite de 2 de janeiro de 2008 em pleno rigor do inverno europeu.
No dia seguinte, assim que pulei da cama fui a uma padaria próxima ao hotel e lá tive a surpresa nada higiênica e muito desagradável (para qualquer brasileiro) diante daquela verdadeira sinfonia de narizes sendo assoados ao mesmo tempo, cada qual mais alto que o outro.
Eram dias chuvosos de temperaturas na casa de 2 graus positivos com muita neve e sensação de 10 graus negativos. Os restaurantes e cafés de Munique ficavam abarrotados, e as cenas com gente assoando o nariz se repetiam, alguns até lembravam o som de cornetas.
“Acho feio e nojento, mas muitas vezes me pego fazendo a mesma coisa. O pior é que isso pega, o exemplo se espalha pelos quatro cantos do País”, disse Vânia Dalpasqualle, uma paulistana que encontrei no aeroporto de Frankfurt pouco antes de embarcar para Berlim.
Como sempre faço em todas as capitais por onde ando no mundo, em Berlim fui visitar a nossa Embaixada em busca de informações para entender melhor as tradições e costumes locais. Lá encontrei Maria Aparecida Pestaleze, uma senhora de Jaú, cidade do interior paulista, que esperava ser atendida para fazer o registro de nascimento do neto recém nascido na Alemanha.
Quando falei sobre a sinfonia dos narizes, ela que morava na Alemanha já havia 12 anos, disse que, para os alemães, assoar o nariz em público sinaliza boa educação.
“O que ainda me surpreende aqui é o uso de toalhas úmidas na higiene da pele. Os alemães são rigorosos na economia de água e no inverno é comum as toalhinhas substituírem o banho de chuveiro”, comentou a senhora paulista.
Nesses 12 anos, entre 2008 e 2020, os alemães não devem ter mudado seus costumes, porém, se o comportamento de assoar o nariz em público nos causa nojo, a disciplina pessoal, o foco, a racionalidade e a organização da sociedade alemã em torno de um propósito coletivo nos causam inveja. Tudo que não temos.
A propósito, não que os alemães dependam do governo dizer o que devem fazer, mas as proibições governamentais por lá com o objetivo de evitar o contágio e desacelerar o avanço do Covid-19, incluindo a suspensão às viagens turísticas dentro e fora do país, ou seja, ninguém entra e ninguém sai, permanecem inalteradas.