A fábrica de moer trabalhadores
É brutal e devastadoras as marcas no trabalhador dos modos de reprodução do capitalismo na atualidade, especial as plataformas numéricas – o sistema – , a ditadura do algoritmo, o fetiche das tecnologias, e sobretudo, a colonização das subjetividades. O canto sedutor do consumo e da acumulação, traduzidos em vozes que proferem injunções, as quais conectam as exigências produtivistas com o narcisismo. Ideia que não se aplica a maioria da classe que vive do trabalho, mas a uma minoria que tem acesso aos “sistemas”, a maioria ainda tenta sobre-viver na miséria. A fome voltou a nos assombrar, que dizer, àqueles que ainda não foram tomados pela patologia da indiferença.
Partimos do pressuposto que um caminho possível para pensar essa problemática é questionar o sentido social e político da colonização. O discurso e ideologias sobre os “sistemas” tenta nos colonizar. É um discurso alimentado por valores de dominação e saber totalitário, produzindo efeitos nefastos sobre os modos de pensar, sentir e agir humanos. As tecnologias despersonaliza, não tem cara. Pelo excesso de informação, as plataformas numéricas podem produzir um curto-circuito na nossa capacidade crítica-analítica.
Assim, são produzidos sujeitos que aos poucos se melancolizam e podem sucumbir à patologia da indiferença. Essa indiferença tende a existir tanto nos contextos de emprego formal assalariado quanto nas novas modalidades de (des)emprego, considerando a globalização do discurso digital na sociedade. Assim, o discurso é, ao nosso ver, o revelador do engate da subjetividade pelas exigências do mundo do trabalho produtivo capitalista.
Cria-se uma fabrica de moer trabalhadores, coisificar, usurpar e aprisionar a nossa existência ético-política, nossa liberdade de ser. Nessa fábrica, as relações são assimétricas, de opressão, subordinação, sem reciprocidade e sem estabelecer o laço social. Fabrica um sujeito sem trabalho. Produz e é produzido por subjetividades normopatas, consolida a despersonalização. Produz uma “carnificina” pela caçada às metas, aos resultados, ao sucesso, à perfeição, ao absoluto, ao total.
Uma fabrica, sustentada pelo medo e desespero do confronto com o desamparo, que se enfraquece quando a angustia como força motriz questionadora sobrevive, denunciando, por meio do adoecimento, acidentes e suicídio, o modelo falacioso de promessa do “paraíso perdido” – a onipotência, a arrogância, a soberba. O adoecimento coloca à prova este projeto de “carnificina” como arma principal para exterminar o humano do mundo da produção.
Nesse contexto, encruzilhas e labirintos se impõem para todos nós, especial para os que pensam. Talvez assistir ao filme A fuga das galinhas nos conforte ou não?… Enfim, por acreditar que todo labirinto tem uma saída, tenho insistido na ideia que o trabalho vivo ainda é uma possibilidade de resistência e existência. Pensar, como o maior de todos os trabalhos humanos, colocar em questão o poder, o querer, o dever, se perguntar quem trabalha e para quem, talvez seja um caminho possível para balançar – quem sabe furar – os esquemas dos “sistemas”, e talvez nos fazer re-lembrar dos trabalhadores que já estão sendo moídos desde a escravidão.
(*) Ana Magnólia Mendes é professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília (UnB).