Assédio eleitoral e a sombra do voto de cabresto
Em ano de eleição, as denúncias de assédio eleitoral explodem, o que levanta uma questão importante para reflexão: a fragilidade da democracia diante de práticas que violam a liberdade de pensamento e de voto, direitos fundamentais e irrenunciáveis. Esse cenário se torna ainda mais preocupante quando consideramos o assédio eleitoral no ambiente de trabalho, que não apenas compromete a integridade do processo democrático, mas também viola os direitos fundamentais dos trabalhadores.
Mesmo em nações como o Brasil, que possuem uma sólida estrutura legal para garantir esses direitos, persistem essas formas insidiosas de agressão, que ecoa o triste legado do “voto de cabresto”, um resquício do passado que ainda se faz presente, mas agora assumindo uma nova dimensão principalmente potencializada pelas redes sociais.
Signatário de importantes instrumentos normativos internacionais sobre direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticas, o Brasil prevê em sua Constituição que ninguém será privado de direitos por motivo de convicção filosófica ou política. Prevê também que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos.
Apesar das garantias legais de liberdade de voto, o ambiente de trabalho muitas vezes se torna um espaço de pressão e coerção eleitoral. Sob ameaças de demissão ou retaliação, os funcionários são frequentemente forçados a votar em candidatos indicados pela direção da empresa, abusando do poder diretivo para manipular a escolha política dos trabalhadores. Essa prática não apenas viola o direito fundamental de cada cidadão de exercer seu voto de forma independente, mas também cria um ambiente de medo e submissão que compromete a integridade do processo democrático.
Para não dizer que não falei das flores, abro um parêntese sobre o serviço púbico. Além do ambiente laboral das empresas, de igual modo, há relatos no ambiente do serviço público, de servidores que ocupam funções de confiança, cargos comissionados e até pessoal terceirizado e estagiários que são obrigados, em época de campanha, a participar de carretas, trajados com cores de partidos e camisas com nomes e número de candidatos, correndo atrás de trio elétrico do candidato da situação, a fazer bandeiraços e planfletagens nas principais esquinas, sob pena de perder o cargo. Fecho parêntese.
A prática do assédio eleitoral, especialmente no ambiente de trabalho, se torna ainda mais repreensível ao considerar a vulnerabilidade do trabalhador diante do poder diretivo do empregador. Esse cenário coloca o indivíduo diante de uma escolha injusta entre o exercício pleno da sua cidadania, por meio do voto livre, e a manutenção do seu emprego, a fonte de sua subsistência e de sua família.
Relembrando o termo “voto de cabresto”, cunhado durante o período do coronelismo na República Velha, percebe-se uma intrínseca relação com o assédio eleitoral moderno. A antiga prática de submissão do eleitorado a interesses particulares de líderes políticos locais reflete-se hoje nas pressões e coações exercidas dentro das relações de trabalho, onde o empregador detém o poder de influenciar indevidamente as opções políticas de seus empregados.
Proteção contra discriminação - As normas de proteção contra qualquer forma de discriminação e as garantias de liberdade de pensamento e de voto não são apenas dispositivos legais, mas sim expressões de valores sociais fundamentais, que visam a preservar a dignidade humana e o direito à liberdade. Em outras palavras, o assédio moral eleitoral, caracterizado por condutas abusivas que visam à submissão do trabalhador a interesses políticos específicos, constitui uma violação grave desses princípios.
Ao abordar o tema do assédio eleitoral no ambiente de trabalho, não se pode negligenciar as consequências jurídicas e reputacionais para as empresas envolvidas nessas práticas. A atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) no combate a esse tipo de violação é rigorosa, tendo como prerrogativa a defesa dos direitos coletivos, difusos e individuais indisponíveis dos trabalhadores. A postura da instituição frente ao assédio eleitoral se reflete na aplicação de penalidades severas às empresas que violam os preceitos de liberdade e dignidade dos trabalhadores.
Uma das consequências diretas para as empresas que praticam ou toleram o assédio eleitoral é a imposição de altas indenizações, seja através da assinatura de termos de ajuste de conduta, seja através de condenações judiciais em ação civil pública. Essas indenizações visam a reparar os danos morais coletivos causados aos trabalhadores e ao regime democrático, além de servirem como um mecanismo dissuasório contra a perpetuação de tais práticas. A magnitude dessas indenizações reflete a gravidade do ato e o compromisso do sistema de justiça em proteger os direitos fundamentais dos trabalhadores e a integridade do processo eleitoral.
Além do impacto financeiro, as empresas flagradas praticando assédio eleitoral enfrentam significativos prejuízos à sua reputação. Em uma era caracterizada pela rápida disseminação de informações e pelo aumento da consciência social e política dos consumidores, a imagem de uma empresa pode ser severamente afetada ao ser associada a práticas que violam direitos fundamentais e a ética empresarial. A reputação, uma vez manchada, demanda esforços consideráveis e tempo para ser restaurada, podendo, em casos extremos, resultar na perda de clientes, parceiros comerciais e oportunidades de negócios.
A atuação firme do MPT e as consequências para as empresas reforçam a necessidade de uma gestão empresarial ética e alinhada aos princípios democráticos e de respeito aos direitos fundamentais dos trabalhadores. A adoção de políticas internas claras, treinamentos e uma cultura organizacional que valorize a liberdade de expressão e a diversidade de opiniões políticas são essenciais para prevenir o assédio eleitoral e garantir um ambiente de trabalho saudável.
Portanto, além de representar uma violação aos direitos fundamentais dos trabalhadores, o assédio eleitoral traz consequências sérias e duradouras para as empresas, tanto em termos financeiros quanto reputacionais. Isso sublinha a importância de uma vigilância constante e de uma postura proativa por parte das organizações no combate a essas práticas, em prol da preservação dos valores democráticos no ambiente de trabalho, bem como de sua própria integridade e imagem no mercado.
Diante desse cenário, é imperativo reconhecer o assédio eleitoral como uma manifestação contemporânea do voto de cabresto, rejeitando-o veementemente. A efetivação dos direitos e liberdades fundamentais exige um compromisso coletivo de vigilância e resistência contra tais práticas, assegurando que a participação política ocorra em um ambiente livre de coações e discriminações, verdadeiro alicerce de uma sociedade democrática.
(*) Adriana Maria Silva Cutrim é procuradora do Ministério Público em São Paulo, autora de livros jurídicos e especialista em compliance e direitos humanos.
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