Corram, que os bacharéis vêm aí!
Muito se falou da judicialização da política ou da politização do Judiciário. Aplausos para aqueles advogados que têm se empenhado no combate a invencionices malsãs, como a tropicalização da Teoria do Domínio do Fato (lembram?), que remonta a Carl Schmitt, e foi aqui ajeitada de modo trôpego, mas vingou, inflamada pela dita opinião pública – que queria linchamento, e basta.
Mas isso – e não vamos derrapar em terreno de especialista – é passado.
O presente é mais prosaico. Traz uma enfermidade que se instalou na cachola de vários bacharéis que de repente se arvoram eminentes juristas, bronzeados Carl Schmitts, e ai de nós se dependermos de seus préstimos. Ai, bota ai aí. Na carona da fama e visibilidade dos juristas de fato, acham que podem exarar jurimaluquices, principalmente na hora do cliente pagar o pacto de contratos mirabolantes.
Um caso ocorrido com um amigo dá bem a medida da paródia negra em que se transformou, por vezes, a relação entre cliente e seu patrono, neste país.
Tratava-se de uma causa cível, aparentemente simples. O cliente, que estava de passagem pelo Brasil, em rápida vídeo-reunião com o advogado acertou honorários X como contrapartida a duas rápidas tarefas: o simples protocolo de uma procuração e uma conversa telefônica com o advogado da outra parte, na expectativa de acordo.
Recebeu um cavalo-de-troia. Graças aos deuses, e apesar da pressa, teve a pachorra de ler. Que susto! Já na procuração de uma página o bacharel conseguiu a proeza de errar a vara, anteriormente informada por escrito pelo cliente. Não, não era criminal, não, não era a vara de Santana de Parnaíba. Mas lapsos acontecem.
O sobressalto, mesmo, foi o teor lunático do contrato. Não continha nada do combinado, mas, em compensação, contrabandeava algumas extravagâncias dignas do Guinness. A primeira e principal era a de impedir draconianamente o cliente de exprimir, a qualquer momento, sua vontade e interesses. O cliente ficava expressamente proibido de sugerir, optar, declinar ou mesmo decidir. Virou refém. Simples assim. Um entrecho comum em Hollywood e suas ficções de reféns malandros que pagam pelo cativeiro para dividir o resgate.
Meu amigo desconfiou, e me enviou o item I, “Do objeto”, perguntando se era normal, no Brasil.
“[…] cabe aos advogados imprimir à causa orientação que lhe pareça mais adequada, sem se subordinar a intenções contrárias do cliente, mas, antes, procurando esclarecê-lo quanto à estratégia traçada.”
Esclarecê-lo e obrigá-lo a engolir sem soluçar. O pressuposto, com certeza, é o de que meu amigo é hipossuficiente jurídico e hipossuficiente mental. Pois estaria dando licença para que agissem à sua revelia. Na hipótese de ele decidir A (pois não quer ou não pode prosseguir ou pagar, ou escolhe outra estratégia a submeter a seus patronos), ficaria a ver navios, melhor, naufragando sem piedade, como a terceira classe do Titanic. Nem boia de pato lhe ofereceram em contrapartida, como brinde.
Em compensação, conforme o extraordinário contrato, se os Carlzinhos Schmittinhos se inclinarem, por qualquer idiossincrasia ou distração (ninguém ousaria mencionar má-fé!), pelo caminho B, diametralmente oposto ao A, o cliente não pode interferir. Mudo e surdo, que se vire e se reinvente e peça empréstimo a algum banco. E perca. O B, que poderia ter sido rejeitado, já constará dos autos, e cliente não pia.
Não, disse a meu amigo, no Brasil ainda não é assim. Será que esses neojurisconsultos se inspiraram numa clássica anedota da era soviética? Que é assim: um passarinho tiritava de frio no inverno siberiano quando apareceu uma vaca e fez cocô logo abaixo de seu galho. O passarinho, agradecido, pulou para o quentinho das fezes. Ficou tão feliz de estar aquecido que começou a piar. Piou tanto que um gavião ouviu, aterrissou e o devorou. Conclusão: nem sempre quem o põe na merda quer o seu mal, nem sempre quem o tira dela quer o seu bem, e, estando na merda, nunca pie! Deve ser isso.
Mas não para aí.
É óbvio que “na hipótese de intransponível falta de confiança do CONTRATANTE na estratégia estabelecida, os CONTRATADOS exercerão o direito de renunciar ao mandato, nas formas legais”. Tá oquei, não fosse uma interessante interpolação, que determina que os bacharéis, ao contrário do cliente/refém, podem renunciar de imediato, mas no caso de um pedido de substabelecimento por parte do cliente, desgostoso com a condução do caso, o cliente deve continuar a pagar os bacharéis despedidos durante 60 dias (DOIS meses), “60 dias para a rescisão pelo contratante, durante os quais os pagamentos devem ser continuados, sob pena de punição”. E a punição virá com a “incidência de correção monetária pela Tabela prática do Tribunal de Justiça de São Paulo, multa moratória de 2% (dois por cento) e juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, sem prejuízo da rescisão a critério exclusivo do contratado”.
Talvez seja o caso de aperfeiçoar tanta isonomia, sugerindo que o advogado pegue logo um voo para o Caribe, já que pode abandonar a causa sem empecilhos ou ressalvas, pois caberá sempre ao cliente/refém custear suas diárias e mojitos durante a estadia. Podem ser daiquiris, também.
Mas não é apenas a presunção de inocular a síndrome de Estocolmo a meu amigo que intriga. Intrigante também é o fato de os honorários constantes do contrato serem o dobro dos combinados na reunião. A explicação (expediente, jamais!) é esclarecedora: como o contato telefônico eventualmente poderia fracassar, eles eventualmente teriam que cobrar horas-extras de eventuais petições não contempladas (sempre sem a anuência do cliente!), o que deveria ser pago adiantado. Daí que de eventualidade em eventualidade, sobre cujo rumo o cliente não palpita, se deva elevar os honorários antecipadamente a 2X.
Mais, esses honorários dobrados (em vez de 15 mil, 30 mil no ato, em vez de 30 mil, 60 mil) devem ser pagos adiantados, em quatro parcelas mensais. Teriam os sagazes e imberbes schmittianos poderes telepáticos? Pois se já desconfiam de antemão do fracasso de sua estratégia, para que arriscá-la? Não, são apenas protofilósofos aristotélicos esses bacharéis: como todo ovo em ato é potência de galinha, e a galinha em ato é potência de coq au vin, já cobram pelo paladar afrancesado.
Tem mais: “Na hipótese de a demanda alcançar complexidade incompatível [???] com os honorários estabelecidos, estendendo-se por mais de um ano em primeiro grau, será estabelecido valor de manutenção mensal de Z, devido a partir do 13º mês, inclusive, contado da juntada da procuração até a efetiva subida dos autos”.
Natural. Todos sabem que os processos andam com uma celeridade sideral, e jamais prolongam-se por mais de um ano.
Então temos, no ato de assinatura do contrato do refém: pagamento em dobro do estipulado, mais uma taxa mensal caso o processo não termine depois de amanhã, mais os custos do cliente com as diárias advocatícias da estadia no Caribe.
Para aí? Não.
A mais engenhosa cláusula vem a seguir: o refém está obrigado a desembolsar o equivalente a uma “cláusula de êxito”, além do citado acima. “Honorários pelo êxito, assim considerado o provimento integral ou parcial dos pedidos de reparação material e moral, se houver, na proporção de 10% (dez por cento) do valor da condenação.”
Sim, alguns advogados trabalham exclusivamente com essa cláusula, e uma módica prestação mensal. Outros com o método de praxe. Mas os dois juntos, que sagacidade!
Essa duplicidade na metodologia de cobrança – a usual, de praxe, mais aquela gorjeta pelo sucesso – me fez matutar se não poderíamos inserir, no corpo do contrato, a “cláusula de fracasso”, que implicaria a devolução ao cliente do montante pago antecipadamente, com correção e juros de mora. Mesmo porque o cliente, não usufruindo do direito de decidir sobre nada, deve certamente ter o direito garantido de ser ressarcido da onipotência e incompetência dos seus patronos. Com juros de mora, e talvez um pedido de indenização.
Nem cheguei a comentar esse particular com meu amigo. Ele havia pedido a opinião de outros, concluído que era uma roubada, e nem mesmo indignado estava. Só estarrecido, e rindo muito de quase ter caído em um engodo. Já arranjou um bom advogado, e fez as malas.
Restou uma certeza: que aqueles bacharéis são escolados, e como!
(*) Marília Fiorillo é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP