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Dilema das plataformas digitais na moderação de conteúdo eleitoral

Por José Carlos Fernandes Junior (*) | 04/06/2024 13:30

À medida que nos aproximamos das eleições deste ano, a discussão a respeito da moderação de conteúdo por plataformas digitais adquire maior relevância entre os operadores do Direito, com destaque para a edição da Resolução nº 23.732/2024, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), introduzindo alterações significativas na Resolução 23.610/2019, demandando às plataformas digitais uma postura proativa na identificação e remoção de desinformação.

Acrescente-se a isso o julgamento em curso no STF, em sede de Repercussão Geral, Tema 987, no qual se discute a (in)constitucionalidade do disposto no artigo 19 do Marco Civil da Internet, que prevê que os provedores só podem ser responsabilizados por danos causados a partir de conteúdos gerados por terceiros em suas plataformas se, após notificação judicial específica, não tomarem ações para os remover.

Esse cenário destaca um dilema crítico: se por um lado a proatividade pode contribuir para o enfrentamento à desinformação, propiciando uma resposta mais rápida e abrangente, por outro, ela também pode otimizar a extensão da veste de gatekeeper (poder de porteiro) das plataformas.

Explica Roberta Battisti Pereira que, “o poder de porteiro de uma plataforma consiste na capacidade delas de servir como infraestruturas para os mercados digitais, controlando tecnologias das quais outras empresas dependem para fazer seus negócios” . Como ela bem destaca, entre os gatekeepers da internet há os que se prestam a regulagem do fluxo de informações e os que, a partir dessa regulagem, podem afetar significativamente a participação e a deliberação dentro do contexto da cultura democrática.

Naturalmente que, ao passo que os poderes das plataformas digitais se expandem, também cresce a possibilidade de responsabilização delas pelas ações e omissões, podendo levá-las, diante da incerteza, a optar pela remoção de certas publicações para evitar potenciais consequências legais.

Daí o grande desafio, equilibrar a necessidade de combater a desinformação com o risco de suprimir o debate democrático.

Ora, um dos maiores riscos associados à proatividade é, por certo, a possibilidade de que as plataformas, na tentativa de cumprir as diretrizes regulatórias, acabem por suprimir conteúdo legítimo. Isso pode advir tanto de erros de algoritmos ou de uma interpretação excessivamente cautelosa das normas, acabando por se transmudar em uma forma de censura, onde vozes válidas e necessárias ao debate público terminem inadvertidamente silenciadas.

Possíveis reveses - Neste aspecto cirúrgico, Rodrigo Ruf Martins, advogado do Facebook Serviços Online do Brasil Ltda., em pronunciamento na audiência pública a respeito do Marco Civil da Internet, conduzida pelo STF, no dia 28 de março de 2023, “in verbis”:

“A declaração de inconstitucionalidade (do artigo 19 do Marco Civil da Internet) levaria a um aumento considerável de remoção de conteúdos subjetivos. Conteúdos críticos que são tão importantes para o debate público e para a democracia, eles acabariam removidos mesmo sem violar a lei ou as políticas, mas como uma forma de mitigação de riscos jurídicos pelas plataformas”.

Não se ignora o propósito da resolução do TSE, com a imposição de maior proatividade às plataformas durante o período eleitoral, de mitigar os riscos de ofensa à integridade do processo eleitoral, gerados pela proliferação maçiça de desinformação. No entanto, parece inafastável a necessidade de extrema atenção para os reveses que um excesso de regulação pode gerar, em especial no curso de um processo eleitoral.

Passado idílico - Ainda há muito o que compreender sobre esse mundo digital que se descortina, mas também é crucial que nos afastemos de pseudossaudosimos de uma realidade anterior às redes que, na verdade, nunca existiu, como bem lembra Valter Gualtiéri:

“Uma das coisas mais perigosas que pode haver ao tratar do problema das redes é cair no erro de imaginar um passado idílico anterior às redes que nunca existiu: uma época em que não havia mentira, cerceamento de informação, controle sobre o que as pessoas poderiam ou não acessar. Isso é evidentemente uma mentira. Nunca houve tempo assim. Colocar isso na discussão é importante para vermos o problema de maneira mais equilibrada”.

Não se pretende defender a imunidade das plataformas, muito menos negar a imensidão de informações falsas que circulam nas redes sociais. Apesar disso, mesmo quando relembramos a sábia afirmativa de Henri Lalou, de que “todo homem é responsável pelo risco que cria, queira ele ou não”, é preciso atentar-se para uma hipótese de resultado nefasto, qual seja, que a responsabilização, na forma com vir a ser regulada, ao contrário de estimular o emprego de medidas preventivas à ocorrência do ilícito eleitoral e, por consequência, de ofensas à integridade do processo eleitoral, acabe por frear o debate que é intrínseco à toda eleição ou, pior, calar uns em benefício de outros.

Um comando básico, quando o assunto é regulação das redes sociais, extrai-se da precisa e direta lição de  Diogo Rais: “para proibir uma prática, é preciso, antes de tudo, defini-la”.

Longe de meros espectadores no passado, hoje os eleitores participam ativamente desse “jogo eleitoral”. Daí a exigência de zelo para que os regulamentos, de fato, prestem-se à defesa do processo democrático, inadmitindo-se que se transformem em instrumento inibidor da evolução da própria democracia, diante das transformações digitais céleres e profundas que experimentamos.

Essência da democracia - Desde o último dia 1º de maio, o Google não admite o impulsionamento de anúncios políticos que, segundo noticiários, justificar-se-ia tanto no elevado custo do controle quanto na probabilidade de atritos como TSE, diante das regulamentações editadas por aquela corte.

Ora, embora os impulsionamentos possam ser utilizados para a disseminação de desinformação, ofendendo a integridade do processo eleitoral, também é inegável que o emprego desses pode ser essencial para que propostas de determinados candidatos, menos afamados, cheguem, de fato, ao conhecimento do eleitor.

Por mais louváveis que sejam as intenções, não se pode, a pretexto de defender a democracia, suprimir a essência dela, que está justamente no debate, na crítica, na discordância, na rejeição e criação de ideias etc., sob pena de se admitir como ideal um sistema que não seja tão democrático assim. Afinal, quando o Direito ignora a realidade, mais cedo ou mais tarde, a realidade o atropela.

(*) José Carlos Fernandes Junior é promotor de Justiça do MP-MG, mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM-SP), graduado em Direito, com especialização em Divisão de Poderes, Ministério Público e Judicialização, pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MPMG (Ceaf/MPMG).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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