Dourados conhece Dourados? O estranho caso Eduardo Moreira
A violência, fome e desrespeito com que são tratados os povos indígenas em Dourados, segunda maior cidade do estado de Mato Grosso do Sul, não é novidade para ninguém, em especial para os que vivem no município. Emmanuel Marinho, famoso poeta local, tem uma composição conhecidíssima chamada “GenocÍndio”, que significa a morte indiscriminada e planejada de seres indígenas em Dourados.
Nele, o poeta narra a trajetória das crianças indígenas que peregrinam no município pedindo não apenas o pão, mas o resto dele: o pão velho. Assim diz: “Crianças batem palmas nos portões. / Tem pão velho? / Não, criança / tem o pão que o diabo amassou / tem sangue de índios nas ruas / e quando é noite / a lua geme aflita / por seus filhos mortos”.
O poema, para quem não vive em Dourados, pode parecer algo meramente alegórico, mas para os douradenses é um retrato fiel e amargo da realidade indígena no município. Todos, sem medo de errar, já atenderam à porta ou encontraram nas ruas sujeitos indígenas, em regra crianças, pedindo o que lhes é de direito, segundo o texto constitucional, que a é alimentação.
Entra e sai presidente, governador e prefeito e tal realidade pouco muda. Buscando exemplificar, a Comissão Interamericana lançou em março do presente ano o relatório da situação dos Direitos Humanos no Brasil. Nele, a situação indígena em Dourados está estampada negativamente. O relatório afirma que há uma grave situação humanitária no município sofrida pelos povos Guarani e Kaiowá, que se dá, em grande parte, pela violação de seus direitos territoriais, ou seja, a não demarcação de suas terras. O relatório cita, também, os frequentes ataques das milícias armadas, que causaram várias mortes e desaparecimentos. Outra situação alarmante é o aumento da retirada das crianças indígenas de suas mães para serem colocadas em abrigos[1].
A imprensa local, cotidianamente, publica o desrespeito dos poderes constituídos para com os indígenas. É caso das seguintes matérias:
- Em meio à pandemia da Covid-19, indígenas da maior reserva urbana do país caminham até 2 km em busca de água contaminada.
- Indígenas de Mato Grosso do Sul enfrentam fome e aumento de 7.500% dos casos de Covid-19.
- Em 2018, Mato Grosso do Sul figurou como o segundo estado com maior número de assassinatos indígenas do Brasil.
- Motorista foge após matar atropelado indígena de 6 anos, em rodovia no município.
Não por menos, Deborah Duprat, procuradora federal, já afirmou que a região representa a Faixa de Gaza brasileira.
Apesar de não faltarem dados negativos e de todos os douradenses vivenciarem o desrespeito para com os cidadãos indígenas, um caso que trouxe perplexidade aos que aqui vivem que foi o do economista Eduardo Moreira. Conhecido nacionalmente por sua capacidade de defender uma economia menos excludente em que caibam as pessoas e suas vidas de forma digna, Eduardo participou, na última semana, de uma entrevista com a jornalista Leda Nagle na qual apresentou seu projeto “O Brasil de Verdade”, que busca retratar a realidade das comunidades que vivem em situação de miséria no país.
Tentando exemplificar a triste realidade brasileira, que não é novidade para nenhum douradense, afirmou: “Eu passei viajando o país inteiro de norte ao sul e eu morei nos lugares que são difíceis de eu conseguir descrever o que eu vi, como por exemplo Dourados, no Mato Grosso do Sul. Lá eu passei uma semana e as pessoas comem resto de comida, elas moram em lugares sem água, sem esgoto, sem rede elétrica. Elas dormem uma hora por noite com medo de serem mortas pela milícia. Você vê as milícias dos fazendeiros andando em picapes pretas com armas de alto calibre na frente de todo mundo. Todas as famílias têm alguém que já morreu ali, enfim, eu passei ali com eles”.
Essa fala foi o suficiente para que parcela dos cidadãos e políticos do munícipio passassem a atacar o economista com ameaças e notas de repúdio. O que espanta, e o que busco refletir nessa matéria, é se Dourados conhece Dourados, ou se o município faz de conta que não se conhece para seguir vivendo e negando as vidas indígenas, pois não é possível que precise um economista vir de São Paulo para falar da realidade sofrida da cidade, que é mais clara que o sol do meio-dia.
Quem, andando pelos bairros desse município, nunca viu indígenas revirando o lixo por restos de comida? Quem não sabe que parcela expressiva da população, em especial em áreas de retomada, moram em lugares sem água, sem esgoto e sem rede elétrica? Qual douradense não sabe que aqui há segurança privada para defender interesses dos proprietários contra os indígenas? Quem não sabe das mortes e assassinatos indígenas narradas em jornais cotidianamente?
A pergunta que devemos fazer é: Dourados conhece Dourados? Indignar-se e lançar notas de repúdio contra alguém que busca, por meio dos Direitos Humanos, defender quem enfrenta fome, sede, violência e desrespeito à sua cultura é escárnio social. O que chama a atenção é o fato de que os indignados e os que lançam notas de repúdio escondem uma Dourados faminta, desnutrida, triste e violenta escancarada por Eduardo Moreira. Essa cidade existe e todos conhecem, mas fazem de conta não conhecer, pela conveniência de seus confortos.
É preciso lembrar que, para além do ódio que muito sentem dos povos indígenas, esses cidadãos são brasileiros e douradenses e possuem direitos claros resguardados na Constituição Federal.
Como sul-mato-grossense, advogado, professor do curso de Direito da UFGD, presidente da Comissão de Direitos Humanos da 4ª Subseção da OAB de Dourados/Itaporã, quero lhe pedir desculpas, Eduardo Moreira, por tanta violência e pela exposição indigna de sua imagem e de suas ações em defesa dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul. Saiba que em Dourados há cidadãos que conhecem Dourados e que compreendem que sua fala não buscou de forma alguma ofender a cidade, mas tirar da invisibilidade aquilo que deveria ser trabalho dos que te atacam de forma vil e tacanha. Convido você a retornar a Dourados e mostrar para o mundo a beleza da cultura dos povos desse município, mas a miséria com que vivem os douradenses indígenas, fruto da irresponsabilidade dos poderes constituídos deste país, estado e município. Volte, Eduardo! Lhe garanto, há douradenses que conhecem Dourados.
Tiago Resende Botelho – Doutor em Direito Socioambiental pela PUCPR, Mestre em Direito Agroambiental pela UFMT, Bacharel em Direito pela UEMS, Licenciado em História pela UFGD. Coordenador e Professor do Curso de Direito da UFGD, Advogado e presidente da Comissão de Direitos Humanos da 4ª Subseção da OAB de Dourados/Itaporã.