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Elon Musk e capitalismo desterritorializado

Por Patrick Deconto Pelicciolli (*) | 29/07/2024 08:23

O que o caso envolvendo Elon Musk e a institucionalidade brasileira pode nos revelar sobre o atual estado da arte do capitalismo na sua relação com os Estados nacionais? É dessa pergunta que parto para discorrer, em algumas linhas, sobre os impasses políticos que esse recente episódio pode estar desnudando, não apenas com relação ao contexto brasileiro, mas também com outros tantos Estados nacionais ao redor do globo, sobretudo aqueles do chamado sul global.

Esse episódio pode ensejar diversas entradas de análise possíveis, uma vez que tensiona pilares de diferentes esferas da política e da república brasileira. Poderíamos discutir tal contenda, por exemplo, à luz dos seus significados jurídicos, posto se tratar de um dos homens mais ricos e influentes do mundo entrando em choque frontal com um ministro da Suprema Corte do quinto maior Estado-nação do mundo em termos territoriais. Ou, então, poderíamos voltar nossa análise para os riscos políticos que estão implicados nessa emergência de uma “internacional fascista”, que, sem dúvida, fortalece-se ao ter em suas fileiras uma figura proeminente como Elon Musk. Estão aqui dois pontos que poderiam ensejar um amplo debate ético e jurídico bastante necessário ao futuro da vida política brasileira e internacional.

O caminho por que pretendo enveredar meu percurso argumentativo leva-nos a uma reflexão sobre a relação que o capitalismo, no seu atual estágio financeirizado, estabelece com o Estado e o modo como esse modelo político tem, paulatinamente, deteriorado as funções elementares de regulação moral e econômica outrora exercidas pela razão de Estado.

À luz de uma noção cara à Psicologia Institucional, diria que o embate de Elon Musk com o Estado brasileiro emerge como um analisador, ou seja, um elemento cotidiano que desponta a partir de dada contradição que nos permite visibilizar um sintoma que pode ser político, econômico e social.

A exasperação de Elon Musk com os supostos desmandos de Alexandre de Moraes não é, portanto, um acontecimento aleatório ou meramente psicológico – como se fosse decorrente do fato de que Elon Musk é um sujeito mimado e egocêntrico –, mas, sim, algo que expõe o movimento de reatualização da lógica colonial pela penetração do capital transnacional em nações supostamente soberanas.

Precisamos ter em conta que Elon Musk já não responde desde o lugar do burguês do século XIX e XX, que, a despeito de ser um burguês e atuar pelos seus interesses econômicos, estava intensamente submetido aos ditames de um projeto de Estado-nação que o instrumentaliza como peça fundamental para a consolidação de um certo projeto nacional de modernização das forças produtivas. Projeto que inscreveria o burguês em uma coordenada geopolítica cujos players seriam Estados nacionais em condição de aliança e disputa com outros Estados-nação. É claro que tal disputa jamais foi simétrica – que o digam os países da periferia do capitalismo, submetidos a uma posição de subalternidade na divisão internacional do trabalho.

O colonialismo, nessas circunstâncias, nadava de braçada, em uma aliança simbiótica com o capitalismo, entronado como racionalidade capaz de validar uma série de atrocidades, tudo em nome do progresso. Decorrem daí os rompantes imperialistas, primeiramente dos ingleses e, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, dos estadunidenses. O imperialismo, enquanto conceito político, só pode ser compreendido à luz da categoria do Estado-nação como farol que ilumina o progresso e em um permanente esforço pela homogeneização das singularidades dentro de uma categoria nacional. Esta poderia ser considerada a conjuntura que enseja a cristalização de um certo capitalismo clássico que já não corresponde mais ao estágio atual do capitalismo mundial.

O capitalismo em tempos de Elon Musk nos exige novos instrumentais teóricos, que por sua vez consigam captar o capitalismo contemporâneo a partir do seu movimento, ou seja, a partir dos agenciamentos empreendidos por seus fluxos afetivos e materiais. Elon Musk é produto do chamado capitalismo desterritorializado, conforme expresso pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari em suas obras escritas ao longo do século XX. Mas o que significaria, portanto, essa “desterritorialização”?

Bem, podemos pensar o território tanto na sua dimensão geográfica quanto subjetiva. O processo de desterritorialização aponta uma progressiva ausência de referenciais políticos e morais que em algum momento funcionavam como âncoras dos empreendimentos econômicos entre capitalistas. Nesse sentido, o Estado operava como uma espécie de ente moderador, que por muitas décadas retardou a esquizofrenização do capitalismo. Essa moderação, hoje, já não é mais possível e explica porque Elon Musk se sente autorizado a questionar autoridades políticas e jurídicas brasileiras, como se aqui não houvesse um arcabouço constitucional que regula nossa vida social, resultado de um denso embate realizado à luz dos pressupostos da democracia liberal.

Como agravante, devemos considerar o poder que Elon Musk carrega consigo desde que se tornou proprietário de uma das redes sociais mais importantes do nosso tempo, por onde uma torrente informacional está a circular, forjando permanentes modos de conceber e perceber as diferentes contendas éticas e políticas do nosso cotidiano. Elon sabe que pode, por meio das ferramentas algorítmicas da sua rede, influenciar de forma decisiva a vida política de muitos países, tornando-os, assim, reféns de uma liberdade de expressão irrestrita que, em última análise, atua para a corrosão das bases democráticas que produzem as mediações necessárias para uma pólis que não tolera discursos de ódio endereçados a minorias sociais. Elon despreza tudo isso, pois seu próprio senhor, o capital, desconhece quaisquer limites que possam se colocar como horizonte ético.

(*) Patrick Deconto Pelicciolli é psicólogo, mestre e doutorando do PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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