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Esperança, colantes e impacto social

Octávio Schuenck Amorelli (*) | 27/05/2022 08:20

Esperança.

É incrível pensar o quanto a esperança faz parte da nossa vida, o quanto ela pode nos nutrir. São inúmeras, centenas de milhares ou milhões de narrativas criadas a partir da esperança, que nos sugerem que não há noite que não amanheça ou mal que prevaleça.

Entre as percepções pela esperança encontramos o professor Joseph Campbell, mitologista e literário, que propôs o monomito, a jornada do herói analisada em suas múltiplas faces, um algoritmo narrativo que nos conduziu enquanto sociedade por mitos, lendas, religiosidades, lições e aprendizados. O herói, em seus arquétipos, cruza uma série de desafios entre a chamada para aventura, a separação de sua terra e mentores, as viagens internas e externas em busca de uma salvação para sua comunidade.

Esses mitos e narrativas são criados e recriados através da nossa história. Por vezes anacrônicos, são narrativas coerentes com os preceitos de sociedade da sua época, o que nos leva a perceber grandes doses de violência, discriminação e punição em diversas histórias escritas há 3 mil ou há 70 anos.

No século XX, a era dos extremos germinou na literatura e nas artes visuais a essência dos superdeuses, criaturas extraordinárias que remixam os deuses da antiguidade com a cultura pop e seus próprios marcos entre a moda, a música, o cinema e outros suportes. Esses deuses de colante e acessórios, com laços mágicos e raios laser tornaram-se uma parte essencial dos nossos tempos fraturados e carregam consigo valores (por vezes esquecidos pelos próprios personagens) de bondade, gentileza, responsabilidade, respeito, criaturas cujas narrativas foram criadas para nutrir a bendita esperança. Tanto Super-homem quanto Capitão América surgiram num mundo que vivia a ascensão do nazifascismo e da guerra.

Esses heróis, mesmo com seus traços ideológicos claramente estadunidenses, tornaram-se símbolos de salvação para aquela época e impulsionaram a criação de centenas de outros, com a multiplicidade das mil faces do livro de Campbell. Numa época de grandes marcos da violência humana, os quadrinhos criaram os mais diversos vigilantes, protetores secretos de um bairro, de uma cidade ou de um país, dotados de tudo que há de fora do comum e extraordinário, como feitiços e conhecimentos místicos, poderes extraterrestres, habilidades adquiridas por acidentes de laboratório ou, até mesmo, uma fortuna bilionária usada para fazer o trabalho policial e/ou militar.

Em pouco mais de 20 anos, havia grupos como os X-Men ou o Quarteto Fantástico, simbolizando relações familiares e grupos minorizados. Repare que esses seres, os quais defendo pela esperança, também são vigilantes, compõem milícias e praticam violências para atingir seus objetivos, são contraditórios tal qual os cidadãos que salvam, afinal quantas vezes não vimos nossos super-heróis espancarem um vilão, seus capangas e seus soldados para impedir suas ações?

As últimas décadas foram marcantes e muito significativas para as variações de produção acerca desses super-heróis e super-heroínas, essas personagens atravessaram várias mídias e possibilidades mercadológicas. As histórias em quadrinhos, fonte original dessa literatura cheia de arte visual, ainda são a base de inspiração para a produção de videogames, bonecas, camisetas, filmes, séries de televisão, internet, novelas, livros, mídias sociais, parques temáticos e etc, de fato é quase impossível enumerar todos os alcances e desdobramentos de mercado dos heróis e heroínas.

Entre 2008 e 2022, a Marvel Studios, empresa subsidiária da Disney, que lidera o mercado de audiovisual de super-heróis, arrecadou mais de 26 bilhões de dólares estadunidenses apenas com a bilheteria de seus filmes segundo o BoxOfficeMojo, uma arrecadação que ao final deste ano deve ultrapassar a média de 2 bilhões de dólares por ano, conferindo à empresa um rendimento superior ao de dezenas de países como Cabo Verde, Belize ou Butão.

É grandioso, maravilhoso em diversos aspectos, mas sigo me perguntando, qual o valor que essas narrativas agregam à sociedade? Quais as mudanças esses personagens fictícios podem propor ao nosso espaço tão violento e tão desigual? Recentemente, o Homem-Aranha tornou-se um símbolo da resistência ao autoritarismo no Sudão, creio que essa é a esperança que esses personagens carregam.

Sou um millenial tal qual muitos dos que leem, produzem e trabalham hoje em dia, sou produto de uma geração que foi condicionada a crer, mesmo que por um breve período, que o fim da Guerra Fria seria o fim de todas as grandes guerras, que o futuro seria promissor se preservássemos o meio ambiente, com menos plástico, mais árvores, se ajudássemos os menos abastados e atingíssemos os mais altos níveis de qualificação. Mas essas promessas nunca se sustentaram, a Guerra Fria acabou com a emergência de outras guerras, vivemos uma pandemia que afasta cada vez mais ricos e pobres num abismo tão extraordinário quanto as habilidades do Shazam, temos recordes de violência racial e/ou de gênero, o capitalismo passou a olhar pro oriente como uma ameaça, fosse ela árabe, islâmica, comunista ou chinesa. A sociedade ainda ofende, agride e mata minorias, trata grupos minorizados como ameaças. Mas que ameaças são essas? Das nossas próprias percepções? Ameaças às nossas ideologias?

Os filmes e narrativas de super-heróis evocam esses temas, mas por vezes sem sucesso. Afinal, se são os X-Men um grupo de pessoas marginalizadas por suas características que lutam pelo seu reconhecimento social, porque quem lê suas histórias ou assiste aos seus filmes ainda pratica essas violências? As narrativas têm oferecido salvação e esperança, mas estamos prontos para interpretar, aceitar e praticar?

(*) Octávio Schuenck Amorelli é doutorando em Geografia.

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