Eu nunca comi carboidrato e você também não
Um dia desses, eu li a frase “Eu nunca comi carboidrato!” numa rede social. Essa frase me fez pensar sobre a nossa desconexão com a comida, a ponto de chamarmos os alimentos pelo nutriente que eles contêm. Eu nunca comi e nunca vi um carboidrato, tenho certeza que você também não. Comemos pão, bolo, massa, arroz, batata, alimentos que possuem carboidrato e muitos outros nutrientes em sua composição.
A ciência da nutrição tem evoluído rapidamente: ontem não podia comer ovo, hoje pode, talvez amanhã não possa mais; coma carboidrato, não coma carboidrato; ontem margarina era melhor, hoje manteiga, amanhã talvez inventem uma nova gordura que faça bem. E todas essas informações são facilmente consultadas “dando um Google”.
Elas se somam às preocupações sobre alimentação, peso e saúde, o que nos leva a desacreditar nas necessidades do próprio corpo e passamos a acreditar em regras alimentares. Por aqui, em algum momento, os alimentos perderam seus nomes e começaram a ser chamados pelos nomes dos grandes nutrientes, carboidratos, proteínas e gorduras.
Claro que os nutrientes são importantes, porém não vemos nutrientes nos nossos pratos. Vemos comida. Chamar os alimentos de nutriente nos desconecta do significado do ato de comer. Nosso corpo não é uma máquina. E todas essas informações confundem qualquer um, nós não sabemos mais o que pode ou não comer e estamos perdendo a possibilidade de realizar escolhas alimentares.
Essa ideia restrita de chamar os alimentos pelos nutrientes reduz a importância do ato de comer, fazendo parecer que as minhas escolhas alimentares são realizadas apenas por questões biológicas, ou seja, pela necessidade de nutrientes que meu corpo tem. Na verdade, o ato de comer vai muito além de uma decisão racional baseada em nutrientes.
Veja: eu sempre tenho vontade de comer bolo de cenoura quando estou na casa da minha mãe; os encontros com os amigos e a família sempre envolvem comida; nas festas de final de ano, reunimos nossas famílias e amigos para fazer a ceia, para comer. Tudo isso porque o ato de comer tem componentes emocionais, sociais e culturais. A comida tem e sempre teve diferentes significados para cada um de nós.
Quando penso nos alimentos dessa forma reducionista, enfocando apenas nos nutrientes, também estou reduzindo o que é ser humano. Como se o meu corpo fosse uma máquina e que o combustível fosse apenas carboidrato, proteína ou gordura. Nós não somos apenas seres biológicos, também somos psicológicos e sociais. E comer envolve tudo isso: comemos porque sentimos fome (aspecto biológico), porque sentimos alguma emoção (tristeza, alegria – aspecto psicológico) e porque estamos com outras pessoas (aspecto social).
Michael Pollan resumiu o ato de comer no livro Em defesa da comida: “Esquecemos que, historicamente, as pessoas comem por muitas razões além da necessidade biológica. Comida também tem a ver com prazer, comunidade, família, espiritualidade, relacionamento com o mundo natural e com a expressão de nossa identidade”.
Quem sabe, deixamos os nutrientes para os profissionais que trabalham com os alimentos, com o metabolismo humano e com outros elementos que necessitam dessas especificações para o seu trabalho e suas pesquisas. Enquanto isso, podemos nos concentrar no nosso prato, na nossa comida, no que sentimos quando comemos, nas nossas recordações que envolvem comida e em todos os momentos em que encontramos amigos e familiares para uma refeição especial. Se você ainda quiser uma chave para a alimentação saudável, volte ao simples, de quando viviam as nossas bisavós: coma comida de verdade e cozinhe a própria refeição.
Convido você a aproveitar a sua próxima refeição da forma mais simples possível. Olhe o seu prato e veja além de um punhado de carboidratos, proteínas e gorduras (que são invisíveis aos nossos olhos). Coma comida de verdade. Veja, sinta, saboreie e coma: arroz, feijão, carne, salada temperada com azeite, castanhas, chocolate e o que mais você quiser. Lembre-se de que comer é um ato social.
(*) Stéfani Schneider é nutricionista, mestre em Ensino na Saúde e coordenadora do Núcleo de Assistência Nutricional (NAN) da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis da UFRGS.