Evidências científicas e uso racional de medicamentos
A judicialização da saúde, com notável destaque para os medicamentos, é um problema que vem sendo enfrentado há anos na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e no uso racional dessa tecnologia. A judicialização ocorre quando um cidadão busca obter um medicamento indisponível na rede pública via sistema judiciário.
No Rio Grande do Sul, a demanda de medicamentos fornecidos por decisão judicial é elevada, assim como a de medicamentos do Programa de Medicamentos Especiais, geralmente fornecidos por via administrativa. O Programa inclui medicamentos não contemplados nos programas do Ministério da Saúde e padronizados pela Secretaria de Saúde do Estado (SES/RS) por meio da Portaria 670/2010. Seu financiamento e sua aquisição são de responsabilidade da SES/RS. Para o usuário obter o medicamento, deverá abrir processo administrativo junto à Secretaria, incluindo documentos clínicos e de identificação.
Por um lado, a via judicial pula etapas importantes do processo de avaliação de tecnologias em saúde, necessárias para o emprego racional dos medicamentos. Por outro lado, há necessidade de expertise para embasar pareceres técnicos e elaborar protocolos clínicos relacionados aos Medicamentos Especiais. Nesse contexto, diversos fatores tornam a questão ainda mais complexa: elevado número de medicamentos registrados no país; necessidades clínicas não atendidas pelos medicamentos disponíveis nas listas do SUS; elevados custos de tratamentos recém-lançados no mercado; e interesses econômicos de diversos tipos.
O uso racional dessa tecnologia pode ser promovido a partir da escolha criteriosa do medicamento a ser prescrito pelos profissionais da saúde, que aliarão à sua experiência profissional as melhores evidências disponíveis sobre a eficácia e segurança do medicamento em questão e os valores e as preferências dos pacientes. Em outras palavras, estamos falando de “Prática Clínica Baseada em Evidencias” (PCBE), também conhecida por “Atenção à Saúde Baseada em Evidências”, e que resultou da ampliação do conceito instituído na década de 1990 de “Medicina Baseada em Evidências”.
São conceitos correlatos que chamam a atenção para o fato de que a boa prática clínica, ao menos em farmacoterapia, deve aliar experiência profissional às melhores evidências acumuladas a partir dos resultados de ensaios clínicos e estudos observacionais de boa qualidade.
Para isso, é necessário que as evidências sejam disponibilizadas pela academia, pela indústria farmacêutica e pelas agências regulatórias de medicamentos de forma completa e transparente.
As melhores evidências sobre a eficácia e segurança de medicamentos podem ser sumarizadas por meio de revisões sistemáticas, com ou sem metanálise, desenvolvidas com elevado rigor metodológico. Na elaboração de uma revisão sistemática de boa qualidade, os revisores devem ser imparciais na seleção e avaliação dos estudos individuais que irão fazer parte da revisão, a partir de critérios de inclusão e exclusão explícitos, e com etapas descritas de forma transparente e reprodutíveis.
Esse tipo de publicação economiza tempo do profissional da saúde que leva em consideração o paradigma da PCBE no seu exercício profissional, pois não precisará selecionar os estudos individuais, tampouco fazer a leitura de cada um desses estudos, visto que essas etapas já foram realizadas na revisão sistemática. Dependendo da questão a que o profissional procura responder por meio de evidências científicas, o número de publicações sobre o tema torna a PCBE inviável. Nesse contexto, revisões sistemáticas de boa qualidade podem representar um recurso fundamental para apoiar a tomada de decisões na prática clínica.
Outro tipo de documento de grande importância para a PCBE é a Diretriz Clínica, também conhecida por “guideline” ou protocolo clínico. As Diretrizes Clínicas Baseadas em Evidências devem ser construídas com base nas melhores evidências disponíveis (e que podem ou não já ter sido reunidas e avaliadas em uma ou mais revisões sistemáticas). O processo de construção das diretrizes deve ser explicitado e indicar as intervenções que ofereçam o maior benefício à saúde e a menor probabilidade de danos; além disso, devem proporcionar maior eficiência na alocação de recursos.
Com isso em mente, em 2017, um grupo de professores vinculados ao Programa de Pós-graduação em Assistência Farmacêutica (PGASFAR-UFRGS), naquele momento liderados pelo professor Diogo Pilger, em colaboração com docentes da UFCSPSA e UFPEL, buscaram junto à Coordenadoria de Assistência Farmacêutica da SES-RS (hoje Departamento de Assistência Farmacêutica) estabelecer uma parceria institucional para trocas de saberes e experiências e que viabilizasse investigações científicas com aplicação na resolução de problemas do setor, entre os quais a elevada judicialização de medicamentos. Dessa aproximação, dois projetos de pesquisa de interesse ao SUS foram aprovados na Chamada FAPERGS/MS/CNPq/SES-RS-PPSUS; um deles propondo a avaliação da eficácia, segurança e custos associados a medicamentos fornecidos por via administrativa ou judicial.
A proposta inicial foi desdobrada em dissertações e tese de doutorado de pós-graduandos vinculados ao PPGASFAR e ao Programa de Pós-graduação em Epidemiologia (PPGEPI), com participação ativa de técnicos da SES-RS e de bolsistas de iniciação científica vinculados aos cursos Medicina, Farmácia e Nutrição. Dois estudos já foram publicados, tratando da eficácia dos medicamentos amitriptilina, duloxetina e pregabalina em fibromialgia; outro está em avaliação e outros em elaboração por mestranda do PPGASFAR e doutoranda no PPGEPI.
A possibilidade de pesquisas acadêmicas, a partir de questões relevantes do cotidiano de trabalho dos técnicos farmacêuticos integrantes do Departamento de Assistência Farmacêutica, representa um ganho importante para a formação de recursos humanos na área e para os usuários do SUS no estado.
Outro ganho que merece destaque foi a realização de curso de extensão que permitiu o compartilhamento de conhecimentos e experiências sobre metodologias científicas utilizadas em pesquisas na área de avaliação de tecnologias em saúde, especialmente as revisões sistemáticas e metanálises.
(*) Tatiane da Silva Dal Pizzol é professora do departamento de Produção e Controle de Medicamentos da Faculdade de Farmácia da UFRGS e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Epidemiologia e do Programa de Pós-graduação em Assistência Farmacêutica, ambos da UFRGS.
(*) Isabela Heineck é professora do Departamento de Produção e Controle de Medicamentos da Faculdade de Farmácia da UFRGS e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Assistência Farmacêutica (mantido em associação por diversas instituições) e do Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas da UFRGS.