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Impasses da cultura moderna no Brasil

Carlos Augusto Calil (*) | 13/09/2022 08:10

Recentemente, deparei, por acaso, com um marcador de livros de propaganda da Livraria Cultura/Estante Virtual. Nele estava escrito: “Cultura é o que nos une”. Ao fundo, ilustração com uma tira de filme, com fotogramas e perfurações. Não sei afirmar qual o mais anacrônico, se a tira do filme ou a legenda. Se algum dia a cultura nos uniu, hoje ela está no centro da disputa ideológica, do “Nós contra eles”, da guerra cultural.

O professor Teixeira Coelho, recentemente falecido, costumava apresentar o clip de Jean-Luc Godard – Je vous salue, Sarajevo (1993) – para discutir o conceito de cultura tal como o entendemos no Brasil, onde ele engloba as artes e tem um suposto caráter agregador.

Para Godard, “a cultura é a regra, a arte é exceção”. São complementares, a arte não existe sem a cultura e a exceção não prospera sem a norma. São antagônicos: a cultura é conservadora e a arte, transgressiva. A arte engloba as linguagens – a literatura, a música, o cinema etc. – e também a arte da vida.

“A regra quer a morte da exceção”, assim como a cultura quer a morte da arte de viver. A cultura está na raiz da intolerância, na base do conflito ideológico, na origem da guerra. A guerra dos Balcãs foi uma guerra cultural militar.

A recente pandemia atingiu o campo da cultura e das artes em plena recessão política e econômica, ocasionada pela disruptura promovida pelo governo federal. O isolamento compulsório impossibilitou a realização de espetáculos, exposições, shows, bem como a abertura de museus, bibliotecas e centros culturais. Os artistas e as instituições viram-se impedidos de atuar. Diante desse trauma, o imperativo é sobreviver. O retorno à normalidade, cumpridos os protocolos do convívio social seguro, no entanto, não poderá buscar referência no passado, que já não correspondia às necessidades e nem oferecia perspectivas de um futuro propício.

O momento atual ainda está determinado por um trauma, cujos contornos sociais podem ser emprestados da psicanálise. Para Winnicott, “um trauma é aquilo contra o que um indivíduo não possui defesa organizada, de maneira que um estado de confusão sobrevém, seguido talvez por uma reorganização de defesas, defesas de um tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma”. Advertência precisa: superado o trauma, a regressão é inevitável.

A tendência humana à estabilidade é natural. Ameaçadas pelo ambiente hostil moldado pela natureza indiferente ou pela agitação inerente à vida social e política, as pessoas buscam refúgio nas rotinas e protocolos que assegurem um mínimo de previsibilidade ao quotidiano. Mas essa segurança é ilusória. Apelando novamente a Winnicott, a necessidade primária do ser vivo é “a de ser e continuar sendo”.

Diante da incerteza do curso da vida, que nos escapa à compreensão e ao controle, almejamos alcançar uma rotina confortável, às vezes interrompida por fenômenos como doenças e manifestações naturais. Apesar de ocasionalmente atingirem intensidade aguda, eles são suportáveis por corresponderem a uma suspensão do quotidiano com a promessa intrínseca de um rápido retorno à “normalidade”. A memória do trauma é logo sublimada; sua superação é celebrada com a desmedida que compensa a privação. Assim foi a feroz celebração da vida no Carnaval de 1919 no Rio de Janeiro, após a devastação ocasionada pela gripe espanhola; hoje, após a pandemia do coronavírus, tememos os excessos e a negligência dos incautos.

No campo cultural e artístico, a pandemia não agiu sozinha. Veio acompanhada da marca cruel do ressentimento político, encarnada no governo Bolsonaro. Diferentemente do presidente Collor, que no primeiro ato de seu governo extinguiu os órgãos federais de cultura com uma sanha implacável, Bolsonaro optou por uma “lenta e gradual” asfixia, conferindo ao trauma um componente adicional de sadismo.

Os artistas e as instituições culturais ficaram assim impedidos de atuar, pelas restrições sanitárias decorrentes da pandemia e pela omissão das fontes governamentais de financiamento. A combinação, embora não premeditada, teve efeito fulminante. A lenta reação segue duas direções: como superar as restrições impostas pela pandemia, reinventando modalidades de comunicação e convívio, e como criar alternativas de suporte material às atividades artísticas. As instituições privadas ou semiprivadas, como Sesc-SP, Itaú Cultural ou Instituto Moreira Salles, foram chamadas a acelerar o ritmo de suas iniciativas como forma de compensação à demanda desassistida. Instâncias locais regionais do poder público foram igualmente convocadas a agir tempestivamente atropelando burocracias defensivas.

Recentemente duas leis surgidas no âmbito do Congresso foram aprovadas: as chamadas Lei Aldir Blanc e Lei Paulo Gustavo, que destinarão recursos do Fundo Nacional de Cultura, do Fundo Setorial do Audiovisual e orçamentários a Estados e municípios como socorro aos profissionais do setor cultural, prejudicados no exercício de suas atividades. Como consequência de omissão do governo ou de pressão dos artistas, está se desenhando uma federação de fato no País, ganho que, se confirmado, representará uma nova configuração estruturante.

No campo cultural havia excessiva concentração de recursos e políticas no ex-Ministério da Cultura, que frequentemente agia como concorrente a secretarias de Estados e municípios em detrimento de coordenação estratégica e fomento, impondo sistemas nacionais de submissão política.

O trauma de Collor ensejou uma pressão da sociedade pelo retorno dos mecanismos de renúncia fiscal, criados sem o rigor necessário pelo governo Sarney. Sérgio Rouanet, secretário de Cultura de Collor, concebeu o retorno dos incentivos como uma parceria público/privada, evitando a liberalidade excessiva da legislação anterior chancelada por Celso Furtado. A Lei Rouanet surgiu valorizando o interesse público do bem cultural, mas foi desfigurada no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando quase todas as atividades foram beneficiadas com renúncia fiscal a 100%. Isso significou dispensar o esforço da sociedade na parceria e o estímulo à dependência exclusiva dos recursos públicos. O mal maior da política de cultura é, portanto, anterior à pandemia e à mesquinharia do governo Bolsonaro.

Um dos pressupostos da lei de incentivo era o alento ao mercado cultural. Com investimento público constante e sob a administração privada, acreditava-se que o mercado naturalmente se estabeleceria, liberando o governo para se ocupar das experiências artísticas não comerciais e das instituições públicas, privadas ou governamentais, carentes de fundos. Nem o tal mercado se estabeleceu, nem as instituições foram socorridas pelo governo. Com o incentivo a 100%, as atividades comerciais seguiram o lema muito praticado entre nós: privatizaram-se os lucros e socializaram-se os prejuízos.

Raras vozes discordantes desafinaram o coro dos contentes: Cacá Rosset, Fernanda Montenegro e Antônio Fagundes denunciaram a armadilha do incentivo fiscal que tolhia a liberdade do artista e o confinava numa janela muito estreita de acesso ao público. Fagundes foi além: criou uma companhia teatral própria sem benefícios fiscais e provou que é possível – e desejável – desvencilhar-se da tutela do Estado na cultura.

As políticas de incentivo cultural – incluindo a de apoio ao audiovisual – já estavam em xeque mesmo antes do início do atual mandato presidencial. Haviam chegado ao limite das suas possibilidades e demandavam uma reforma urgente. No caso do cinema, esse esgotamento veio acompanhado de premiações internacionais, o que embaralhou a percepção da crise. Surgiu a ilusão de que os prêmios decorriam de uma boa prática, mas quem está afeito ao tema sabe perfeitamente que essas políticas não estruturaram o setor audiovisual, assim como o campo cultural como um todo, não colaboraram para a sua sustentabilidade, nem que fosse parcial. Ao contrário, sempre caminharam no sentido de aumentar a dependência do poder público, fragilizando a autonomia da prática cultural e a liberdade de expressão artística. Com a chegada do novo governo, visivelmente disruptivo, e com acentuado viés ideológico, essa dependência excessiva dos recursos públicos ficou escancarada e sobreveio a paralisia. Arte sempre se fez na sociedade, com independência do governo e frequentemente contra ele.

Com os recursos públicos privatizados via leis de incentivo, os investimentos diretos nos órgãos públicos minguaram. Orçamentos modestos, aquém do mínimo necessário, e a prática perversa do contingenciamento horizontal tornaram os órgãos públicos – museus, bibliotecas, centros culturais – párias em um sistema que os expele para a administração terceirizada, a das Organizações Sociais. Esta apresenta vantagens sobretudo ao contornar a rigidez do regime público, mas eleva o risco institucional, ao torná-lo dependente de contratos nem sempre cumpridos pelas partes.

O caso da Cinemateca Brasileira é exemplar nesse sentido. Fundação privada incorporada ao governo federal em 1984, nunca foi beneficiada com concurso para renovação do pessoal. Seus funcionários se aposentaram e a instituição foi administrada por projetos, improvisadamente, o que a fragilizou sobremaneira. Sem elaborar uma solução sustentável, o Ministério da Cultura em 2018 repassou a Cinemateca a uma Organização Social do MEC, especializada em TV Educativa, despreparada para geri-la. O MinC se esqueceu da Cinemateca e sequer transferiu recursos para sua manutenção. Quando o MEC rompeu o contrato com a Organização Social, a Cinemateca Brasileira de um dia ao outro ficou ao relento. Fechada por um ano e meio pelo governo federal, período no qual sofreu seu quinto incêndio, só no final de 2021 ela foi reaberta graças a uma doação da Sociedade Amigos da Cinemateca, que a dirige atualmente mediante contrato de gestão.

Nada mais eloquente da falência do sistema cultural brasileiro que o incêndio do Museu Nacional. Ele não foi fruto de um acidente infausto; foi consequência de omissão e indiferença generalizadas durante decênios. No rescaldo das cinzas, as autoridades acusavam-se. Ninguém era responsável, pois decerto somos todos responsáveis.

Uma chave para a compreensão da indiferença que atinge a memória cultural está na reflexão de Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), crítico e professor de cinema, principal articulador da criação da Cinemateca Brasileira:

“O Brasil se interessa pouco pelo próprio passado. Essa atitude saudável exprime a vontade de escapar a uma maldição de atraso e miséria. O descaso pelo que existiu explica não só o abandono em que se encontram os arquivos nacionais, mas até a impossibilidade de se criar uma cinemateca” (1969).

A experiência de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura de São Paulo entre 1935 e 1938 merece uma breve menção. O projeto do DCR era transversal, incluindo, além da Cultura e das Artes, a Assistência Social, Esportes, Lazer, Turismo, Planejamento urbano e Meio ambiente. O DCR era um dos seis departamentos da administração, estava no coração do governo, dispunha de 10% do orçamento da cidade e contava com o apoio político do grupo no poder. Essa concepção, se atualizada, retiraria a Cultura do seu nicho especializado e a levaria a atuar simultaneamente na preservação do patrimônio, no fomento às artes, na qualificação do espaço público, com intervenções na arquitetura e no urbanismo das cidades, na complementaridade da formação educacional pela cultura, em que a educação da criança e do jovem pudesse ser “culturalizada”, enfim, a atuar numa perspectiva abrangente cujo objetivo maior fosse o bem-estar da população. Nas palavras do próprio Mário: “dar ao far-niente uma orientação cultural”.

Numa outra vertente, se a criação artística e a pesquisa em ciência são espontâneas, especulativas, decorrem de uma investigação, de uma busca por inovação, bem que poderiam ser aproximadas. Arte e ciência possuem afinidade, produzem protótipos. Ao invés de recriar-se o Ministério da Cultura isolado, impotente, por que não reproduzir a experiência feita em São Paulo, em 1975, cuja Secretaria de Estado da Cultura, Ciência e Tecnologia era dirigida por José Mindlin?

A indiferença pública é de longe a maior responsável pela ausência de sustentabilidade das instituições culturais no Brasil. Ela sugere que a ruptura promovida por Collor e Bolsonaro no campo cultural só se tornou possível devido à elitização da experiência cultural, decorrente da falha na formação educacional. Cultura institucional no Brasil é cultura de classe. Bolsonaro vai mais longe: estigmatiza a inteligência, despreza o conhecimento e a ciência; para o populista esses não são valores populares.

A manifestação artística emanada da periferia, com Racionais MC, Ferrez, Favela da Maré etc., surgida na década de 1990 mudou o panorama da política cultural, com a dispensa da tutela do governo. Ela não vem mais de cima para baixo, do branco ao negro, do rico ao pobre. Ela adquiriu voz própria e disputa o espaço econômico e a mídia. Pode se dar ao luxo de dar as costas à cultura oficial, como faz o Funk. E serve de alerta para a urgência de superarmos a vergonhosa desigualdade social e racial.

Ao celebrarmos o centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência, a consciência aguda que aflora é quanto à fantasia, durante muito tempo sustentada pelo establishment, da “identidade cultural” do País. Sabemos hoje que o maior capital de um território da dimensão do Brasil é justamente sua DIVERSIDADE CULTURAL a par de sua DIVERSIDADE AMBIENTAL. Para atendê-las será necessário inventar uma federação política e cultural com autonomia e respeito à diferença. Se é impossível administrar uma cidade do porte de São Paulo do Viaduto do Chá, mais difícil ainda é controlar um território tão vasto a partir de uma ficção geográfica como Brasília. O processo de descolonização será ao mesmo tempo interno e externo, na medida em que o País volte a orgulhar-se de sua potência para superar os entraves da desigualdade, disfuncionalidade e excesso de política.

Independentemente da pandemia ou da crise política, nosso tempo é o do desfrute individual atrelado aos celulares. Se, por um lado, é formidável constatar o acesso de milhões a um microcomputador que conecta o indivíduo ao mundo, isso não o torna um cidadão planetário. Ao acentuar o individualismo, o apelo ao compartilhamento da experiência social fica ainda mais atraente. Em São Paulo, a conquista das ruas, na Virada Cultural e mais tarde no Carnaval, foi a resposta ao confinamento virtual.

Se o confinamento real, decorrente da pandemia, represou a sociabilidade, sua superação irá lançar as pessoas novamente no espaço público, com muita gana de tocar, olhar, abraçar, dançar, participar da experiência coletiva em bares, restaurantes, teatros, parques, segundo protocolos estritos. Em suma, de exercer a arte da vida, aquela que, segundo Godard, a clivagem cultural quer matar.

(*) Carlos Augusto Calil é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP)

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