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Março é tempo do jerosy no calendário tradicional guarani

Por Neimar Machado de Sousa (*) | 12/03/2019 16:19

O calendário tradicional guarani na região do Mato Grosso do Sul aponta o mês de março como o tempo do jerosy, o ritual do batismo do milho saboró, chamado de Milho Jakairá.

O aparecimento dos deuses e deusas expressam que Nhanderu Guasu, o criador, não queria ficar só. Da vitalidade primordial, o Jasuka, aos pés do Xiru, procederam Pa’i Tambeju, Jakaira Guasu, Jakaira Mirῖ, Tupã Guasu e muitos outros deuses e deusas.

Jakairá, o pai verdadeiro, e seu filho, Jakairá Guasu, foram designados como os guardiões, jára, da bruma de onde nascem as belas palavras. É ele quem espalha a bruma pelo leito da terra para que o bem-viver e os alimentos germinem todos os anos. Esta bruma é reproduzida na fumaça do tabaco, petῖngua, dos rezadores, mediante a qual comunicam-se com as divindades.

O ritual do Jerosy (mborahéi itymbýry rete rehegua), dividido em canto longo (jerosy puku) e canto menor (jerosy mbyky) é uma canto-dança-reza sobre as plantas que brotam do corpo de Jakaira.

Jakaira foi a divindade que criou o milho branco (Avati Jakairá), amarelo (Avati Tupi), a mandioca (mandi’o) e a batata (jety). Ele é o guardião que proporciona uma boa produção de todos os produtos agrícolas e alimentos tradicionais. O resultado do jerosy puku, seu canto ritual, é a purificação dos produtos agrícolas de todas as impurezas, trazendo equilíbrio social.

O Jerosy conta como surgiram os produtos agrícolas e quando o nhanderu, sacerdote indígena, o canta novamente junto aos seus auxiliares, yvyra’ija, o tempo recomeça. O tempo histórico põe-se a caminhar (oguata) no mesmo ritmo do tempo sagrado e o calendário inicia renovado um novo ciclo terreno como no princípio da criação.

O jerosy é a benção cantada (jehovasa) da colheita e dos alimentos maduros (aguije) antes de seu consumo. Durante este canto cada divindade é buscada do lugar de sua plenitude e em cada palavra dita com perfeição o jakairá é incorporado na sua força vital que provém do jasuka, princípio vital.

A semente do milho saboró foi retirada da vestimenta de Jakaira, o ku’akuaha, seu cinto, germinada magicamente pela reza. O milho deve ser cultivado segundo as mesmas etapas de jakairá, do cultivo à colheita. Assim crescerá livre das pragas até ser colhido verde (avati kyry) e abençoado. O ritual é conduzido pelo sacerdote, nhanderu, o primeiro a consumi-lo ritualmente sob a forma de chicha, o jakairárary.

Esta é a bebida preferida de todos os deuses.

Jakairá guasu, irmão mais velho, e jakairá mirῖ, o mais novo, garantem a fecundidade da produção agrícola mediante a invocação, no início do ritual, da força vital que fecunda as plantas, ytymby jasuka, a partir da base do Xiru.

Jakaira foi quem plantou a primeira roça (kokuê). O primeiro alimento que plantou foi o milho branco, saboró ou avati jakairá. Um dia depois de plantar a roça, pediu que Pa’i Tambeju fosse buscar o milho. Este pediu que sua esposa fosse buscar, mas esta perguntou se já estava maduro porque o milho havia disso plantado no dia anterior e não podia estar pronto para a colheita.

Jakairá entristeceu-se e aumentou o tempo de crescimento do milho nas próximas roças para cinco meses. O milho é semelhante ao corpo de uma pessoa e se funde com o corpo de quem o consome, sendo o xamã, nhanderu, o primeiro a fazê-lo ritualmente.

Jakairá tornou-se grande aliado de Nhanderu guasu em reconhecimento pelo seu trabalho na roça.

Segundo a narrativa coletada na aldeia Limão Verde (Mbo’ehara Delfino), Amambai, MS, e aldeia Jaguapiru (Yvyra’ija Marciel), Dourados, MS, o pai de Jakaira, Xiru Jakaira, protetor das sementes, estava apaixonado pela filha de handeru Guasu, mas era muito velho, desarrumado e sua aparência desagradava a moça. Tinha bichos de pé, piolhos, feridas pelo corpo e cheirava muito mal. Após algum tempo frequentando a casa de Nhanderu Guasu, percebeu que a moça nunca se casaria com ele.

Um dia foi ao rio onde a moça costumava tomar banho com as amigas, mas quando chegaram o expulsaram da água, pois não se banhariam no mesmo lugar em que aquele homem tão feio e sujo estivesse. Ao sair, retirou um pedaço de seu cinto, o ku’akuaha, e deixou no meio das roupas deixadas por ela na margem do rio. Após um tempo, engravidou e deu à luz um menino sem saber quem era o pai.

Nhanderu organizou uma grande reunião para a qual convidou todos os homensdivinos da aldeia e descobrir quem era o pai de seu neto. Apenas o Anhãy não foi convidado, pois era um demônio malvado. Cada um deles deveria fazer e enfeitar um pequeno arco de brinquedo, guyrapa’i, e oferecer ao garoto, que reconheceria o pai aceitando o presente. 

Quando chegou o dia da reunião o menino recebia os participantes que passavam diante da porta da grande casa, a ongusu. Depois que todos os homens passaram diante do menino, mas nenhum deles foi reconhecido como pai, restava apenas Jakairá, que passou a tardezinha depois das três da tarde, cujo arco foi aceito alegremente pelo menino. Ao aceitar o seu arco disse para a mãe: - Hu’i, pai.

Contando que passaria no dia seguinte pela manhã. Naquele dia seu pai plantou a primeira roça com as sementes que brotavam de seu corpo, ficando magicamente rejuvenescido, livre do peso de todas aquelas sementes. Quando chegou à casa de Nhanderu, foi muito bem recebido, convidado para entrar e sentar-se na rede e colocar os pés sobre um banco.

Nhanderu e Nhandesy, os avós do menino vieram conversar com ele e as irmãs tiveram ciúme uma da outra. A mãe perguntou a Jakairá se podia ir à sua roça. Este disse que ela podia ir com o Mynaku, cesto, buscar o milho, mas ela perguntou como podia estar maduro se havia plantado no dia anterior. 

Com este arco, Jakairá entoou o canto de Xiru Pa’i Kuara e a história dos gêmeos: Pa’i Kuará e Jasy. Este canto, guahu, é reproduzido até hoje ao final do ritual do Jerosy. Jakairá teve seu corpo purificado pela reza de Xiru Marangatu, sendo aceito posteriormente pela filha de Nhanderu Guasu.

(*) Neimar Machado é doutor em educação pela Universidade Federal de São Carlos (SP).

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