Marco histórico na descriminalização da posse e do uso pessoal de cannabis
Na última terça (25/6), o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do tema de repercussão geral que trata da posse, para uso, de pequenas quantidades de cannabis. Os ministros se debruçaram para definir se a conduta de porte para uso deve ser enquadrada no direito criminal, se o artigo 28 da Lei de Drogas é realmente constitucional, tratando ainda de uma quantidade que indica que aquele sujeito é usuário ao invés de traficante.
Desde a criação da lei de drogas, em 2006, observou-se aumento nas prisões e condenações por tráfico, sendo certo que a quantidade de drogas toleradas pelos agentes policiais, Ministério Público e juízes varia de individuo para individuo em razão de condição social, escolaridade, local de residência e cor da pele. Com isso um branco poderá ser considerado um mero usuário, enquanto um negro com a mesma quantidade de drogas é enquadrado como traficante.
Em 2023, o ministro Alexandre de Moraes proferiu voto controverso, porém coerente, olhando para as injustiças sociais que permeiam a aplicação da lei de drogas pelo judiciário brasileiro. Inovou ao sugerir não ser crime ter consigo quantidades de 60 gramas de cannabis, ou seis plantas fêmea.
O julgamento retomado tinha um placar de 5 a 3 a favor da descriminalização desde o último dia 20 de junho. Votavam contra a tese os ministros Zanin, Mendonca e Toffoli. Na seção do último dia 25, Toffoli esclareceu seu voto e afirmou categoricamente que a conduta não é criminosa, porque não é punida com prisão, requisito que caracteriza o ilícito penal no direito pátrio. A esta altura se colocou como sexto voto favorável, e a imprensa já noticiava a maioria.
Luis Fux votou em seguida, em sentido contrário, mencionando que o desacordo cientifico lhe tira a paz como magistrado. Fux se declara profundamente desconfortável e despreparado para definir quantidades, o que me lembrou da frase celebre de Gloria Pires ao comentar o Oscar: “Não sou capaz de opinar”.
Aliás, ficou bastante evidente o desconforto de parte dos ministros ao analisar o tema, que tem bastante eco na opinião pública e que provoca reações do Legislativo (PEC 45, por exemplo). Os ministros deixaram claro que nenhuma decisão da Corte trataria de legalização da maconha, mas sim da descriminalização do usuário, para enquadra-lo por ato ilícito de natureza administrativa, não criminal.
Então foi a vez de Carmem Lucia. É bem usual as mulheres se esforçarem demais para provar seus argumentos, indo além de seus colegas homens em situações de trabalho. Pois Carmem brilhou fazendo o contrário, a ministra profere seu voto de forma rápida, didática e cirúrgica. Sem dramas, delimitou os limites da causa, relembrou que a repercussão geral alcança situações diferentes daquela do caso original ou caso paradigma: alguém foi encontrado com 3 g de maconha em sistema prisional. Como Fux destacara repetidamente em seu voto, o sujeito estava preso, cumprindo pena de 11 anos por roubo.
Carmem alfinetou: “Não estamos julgando o crime de roubo anterior, do caso paradigma. Estamos extrapolando para alcançar toda a sociedade. Esta é a repercussão”. Não pediu vênias, e disse que não se trata somente da proteção da intimidade e da vida privada do indivíduo, mas também sobre o princípio constitucional da igualdade, visto que as injustiças sociais acabam determinado de forma diferente o destino de brancos e negros, ricos e pobres. Apenas votou pela inconstitucionalidade do artigo 28, mas sem retirar o texto do ordenamento jurídico, e sim para dar a ele uma intepretação conforme a Constituição.
Assim, votou com Fachin a favor da descriminalização, e com Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes e pela definição de quantidades paradigma para orientar o sistema de justiça. A ópera de Cármem, desta vez, teve final feliz.
Nesta quarta (26/6) a proclamação do julgamento resultou em maioria pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, e pela absolvição do réu (no caso concreto original, paradigma). Com repercussão geral, decidiu-se que portar e usar a cannabis sativa é conduta ilícita, porém de caráter administrativo e não ilícito penal.
Ao ser flagrado com quantidade compatível com uso próprio, o sujeito terá a substância apreendida, será lavrado termo circunstanciado de ocorrência, e o caso será encaminhado à autoridade policial, e então para os juizados especiais criminais, até que haja definição de competência pelo Conselho Nacional de Justiça, sem que ocorra prisão em flagrante.
A quantidade de maconha, para presumir que alguém é usuário ficou definida em 40 g, mas este não é um critério absoluto. Para afastar a presunção, a autoridade policial não pode adotar critérios subjetivos arbitrários (ex. atitude suspeita, denúncia anônima, tentativa de fuga). Deverá analisar o conjunto de provas, a exemplo da presença de balanças de precisão, de anotações com listas de clientes, de mensagens eletrônicas para venda, da constatação de transporte com intuito de entrega, da presença de diversos pacotes menores, elementos que indicariam a intenção de venda, e impõe o processamento daquele sujeito por tráfico.
O julgamento do tema de repercussão geral é um grande passo histórico, na luta pelo acesso de pacientes a cannabis medicinal, no ativismo pelos direitos individuais dos cidadãos por igualdade, segurança jurídica e tratamento justo, o direito de decidir sobre sua própria vida privada e ter respeitada sua intimidade, com justiça social.
Apesar do avanço, o Brasil ainda espera melhor regulamentação sobre a cannabis medicinal pela Anvisa. A posição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária é fundamental para determinar os rumos sobre temas como o plantio de cânhamo, na adoção e outras substancias da cannabis, não só como medicamento, mas também como alimentos, cosméticos e na saúde animal.
(*) Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.
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