Modernização ou combate? IA na gestão dos litígios judiciais do governo
O recente anúncio do governo brasileiro sobre a contratação da Microsoft e da OpenAI, criadora do ChatGPT, para auxiliar na análise de ações judiciais pela AGU (Advocacia-Geral da União) levanta preocupações significativas sobre as prioridades governamentais e o relacionamento com os contribuintes.
A iniciativa do governo visa utilizar inteligência artificial para mapear tendências e reduzir o impacto fiscal de perdas judiciais, especialmente precatórios.
A tecnologia da IA promete aumentar a eficiência na triagem de processos e na produção de textos, otimizando a atuação da AGU em disputas judiciais.
Embora a tecnologia possa proporcionar eficiência, essa estratégia reflete uma abordagem combativa contra os contribuintes, ignorando as causas subjacentes dos litígios judiciais.
É preocupante ver recursos significativos sendo direcionados para uma batalha judicial contínua contra os cidadãos que sustentam a máquina pública com seus impostos.
Ambiente propício para disputas judiciais - Dados recentes mostram que o volume de ações judiciais no Brasil continua a crescer. De acordo com o Relatório Justiça em Números 2024 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2023, havia 83,8 milhões de processos em tramitação no país, um aumento de 1,1% em relação a 2022.
Desses números, as execuções fiscais representam 31% do total, e a taxa de congestionamento na execução fiscal é de 87,8%.
A quantidade de execuções fiscais pendentes é alarmante, indicando não apenas um sistema tributário complicado e frequentemente injusto, mas também a dificuldade que muitas empresas enfrentam para cumprir suas obrigações tributárias.
Isso porque, em um cenário econômico desafiador, muitos empresários são forçados a escolher entre pagar tributos ou manter suas operações. A falta de recursos financeiros leva ao não pagamento de tributos, o que, por sua vez, gera mais litígios e execuções fiscais.
É sabido que a carga tributária brasileira é uma das mais altas do mundo, representando cerca de 33% do PIB, segundo estudos da CNI (Confederação Nacional da Indústria).
Essa pesada carga, aliada à complexidade das leis, cria um ambiente propício para disputas judiciais.
Reforma tributária - Não bastasse o exposto acima, a recente reforma tributária aprovada pelo governo tem gerado ainda mais preocupação entre os contribuintes.
A proposta de unificação de impostos como PIS e Cofins em um único tributo, a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), foi vista inicialmente como uma simplificação do sistema.
No entanto, diversas análises indicam que a reforma pode aumentar a carga tributária para setores específicos, especialmente aqueles que possuem uma cadeia produtiva mais longa.
Isso ocorre porque a CBS, ao incidir sobre toda a cadeia produtiva, pode elevar os custos de produção, que serão repassados ao consumidor final. Este aumento de custos impacta diretamente a competitividade das empresas brasileiras, especialmente as pequenas e médias, que já enfrentam dificuldades para se manterem no mercado.
Em vez de gastar recursos significativos em batalhas judiciais, o governo poderia focar em simplificar e tornar mais justas as leis tributárias.
A modernização do sistema tributário e a redução da carga burocrática não apenas diminuiriam o número de litígios, mas também melhorariam o ambiente de negócios, incentivando o crescimento econômico.
Gastos e desconexão - Ainda segundo o CNJ, as despesas da Justiça em 2023 foram de R$ 132,8 bilhões, o que representa 1,2% do PIB ou 2,38% dos gastos totais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Já a arrecadação de receitas públicas, por meio do judiciário, totalizou R$ 68,74 bilhões, montante correspondente a 52% das despesas de toda a Justiça.
Dessa forma, a estratégia atual do governo de investir em tecnologia para vencer disputas judiciais revela uma desconexão preocupante entre suas ações e as necessidades reais dos contribuintes.
Em vez de adotar uma postura beligerante, o governo deveria se concentrar em entender as causas dos litígios judiciais (especialmente os tributários que podem gerar grandes impactos fiscais). Por que tantos contribuintes recorrem à Justiça? Quais são as falhas nas leis que geram essa insatisfação?
Responder a essas perguntas e implementar reformas estruturais que tornem o sistema mais simples, justo e transparente seria um caminho mais sensato.
Não se trata de ser contra a melhoria da infraestrutura e a inovação para aperfeiçoar o que já existe. No entanto, a estratégia do governo de contratar tecnologia avançada para vencer disputas judiciais reflete um desvio de recursos que poderia ser melhor empregado em reformas estruturais no sistema judicial, além de demonstrar uma postura combativa.
A moralidade do Estado e dos contribuintes deve estar alinhada, pois quando o Estado adota uma postura combativa, sem buscar solucionar os problemas estruturais que levam ao contencioso tributário, ele compromete essa relação de confiança e moralidade.
(*) Leandro da Luz Neto é advogado, mestrando em Economia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), bacharel em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-PR.
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