O consumo de carne demanda uma análise crítica
Em recente reportagem, o Jornal USP abordou o consumo de carnes, trazendo à tona questões importantes, incluindo uma série de equívocos que merecem uma reflexão crítica. Como ponto de partida, é essencial diferenciar a carne fresca in natura das carnes processadas, uma vez que as implicações para a saúde e a nutrição são bastante distintas.
Um dos pontos centrais da discussão apresentada naquela matéria é a percepção negativa que, muitas vezes, envolve o consumo de carne vermelha. É fundamental esclarecer que a carne é um alimento denso em nutrientes, fornecendo proteínas de alta qualidade, minerais como ferro e zinco, e uma variedade de vitaminas do complexo B. Além disso, a carne também contém compostos bioativos que podem ter efeitos benéficos para a saúde. São fatores que tornam a carne um elemento crucial para a segurança alimentar, especialmente para crianças e idosos, que são mais suscetíveis às deficiências nutricionais.
Embora haja estudos epidemiológicos que associam o consumo de carne vermelha a doenças como câncer colorretal e doenças cardiovasculares, é necessário ressaltar que essa associação foi mais evidenciada em pesquisas realizadas nas décadas de 1980 e 1990. Mais ainda, contrariando a ideia apresentada na reportagem referida acima, três meta-análises robustas, conduzidas entre 2011 e 2017, demonstram que não há uma associação significativa entre o consumo de carne vermelha não processada e a mortalidade. Os trabalhos de Micha et al (2010) com 1,2 milhão de indivíduos, Rohrmann et al (2013) com 450 mil, e Dheghan et al (2017) com 135 mil indivíduos corroboram essa visão, indicando que, embora exista uma associação com câncer colorretal, ela é baixa e os benefícios nutricionais da carne vermelha podem compensar essa relação.
A distinção entre carne vermelha in natura e carne processada é crucial. A carne processada está associada a problemas cardiovasculares e aumento da mortalidade, enquanto a carne fresca não apresenta as mesmas evidências negativas. A falta de clareza nesse aspecto pode levar a interpretações equivocadas, resultando na substituição da carne vermelha fresca por opções processadas, que são menos saudáveis.
É importante também destacar que as comparações feitas nos estudos consideram alterações de consumo da ordem de 100 g/dia para aumento do risco, em populações que frequentemente consomem carne processada em níveis elevados. Além disso, a questão cultural e a acessibilidade à carne no Brasil não podem ser ignoradas. A condenação à carne, conforme apresentada na reportagem, se baseia em dados de países ocidentais de alta renda, que possuem hábitos alimentares e contextos socioeconômicos muito diferentes dos nossos.
Quando se analisa o consumo de carne no Brasil, é vital considerar que aproximadamente 10% do valor da tonelagem reportada é composto de ossos, e cerca de 20-30% da produção total de carne bovina é exportada. Portanto, o consumo efetivo no Brasil é menor do que as estatísticas sugerem. Com a perda de 20-30% no cozimento, a ingestão real de carne fresca é ainda mais reduzida. Em termos práticos, um consumo per capita anual de cerca de 37,5 kg se traduz em aproximadamente 100 gramas de carne por dia. Esse é o valor de carne fresca in natura, sendo que se cozida, vai resultar em um consumo de um bife de aproximada 70-75 gramas ou aproximadamente o peso de um ovo jumbo cozido. A própria OMS recomenda um limite de 98 a 500 g de carne vermelha por semana para adultos, e estudos indicam que um consumo de até 75 g/dia não está associado a um aumento significativo no risco de mortalidade.
Embora existam diferentes tipos de carne vermelha, a ideia de que estamos enfrentando um consumo excessivo não se aplica à realidade brasileira, onde muitos não conseguem sequer atingir essa média por questões de renda. Assim, generalizações sobre a redução do consumo podem penalizar indevidamente o setor produtivo de carnes, essencial para a segurança alimentar.
A discussão sobre a pegada de carbono e o impacto ambiental da pecuária também merece atenção. O Brasil é frequentemente alvo de críticas em relação às emissões de gases de efeito estufa, mas muitos desses argumentos carecem de um olhar crítico. O metano, por exemplo, representa apenas 6% das emissões totais globais de GEE em equivalente CO2. É crucial lembrar que o metano tem um tempo de permanência na atmosfera de apenas 12 anos, em contraste com o CO2, que persiste por milênios. Além disso, as promessas de redução das emissões da pecuária são significativas, podendo chegar a 40% por meio de melhorias no manejo e na nutrição animal.
Finalmente, a noção de que a produção de carne está diretamente ligada ao desmatamento, especialmente na Amazônia, é uma simplificação que ignora a complexidade do sistema produtivo brasileiro. Muitas áreas de pastagem não são oriundas de desmatamento recente e, quando bem manejadas, podem até contribuir positivamente para a mitigação do CO2 ou possibilitar um crédito positivo pela captação e estocagem de CO2 na própria pastagem ou em sistemas silvopastoris.
Em suma, o debate sobre o consumo de carne não pode ser reduzido a uma crítica simplista. É necessária uma análise fundamentada que considere a realidade brasileira, os diferentes tipos de carne e as implicações nutricionais e ambientais. A produção de carne é um tema complexo que exige uma abordagem equilibrada e informada, essencial para garantir a segurança alimentar e a saúde da população.
(*) Eduardo Delgado, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. Artigo publicado no Jornal da USP.