O futuro e o passado de uma ilusão
“A intermitência de uma ilusão”, de minha autoria, gentilmente publicado neste espaço, no último dia 15 de fevereiro, recebeu uma torrente de comentários, impressões, cumprimentos e hostilizações. Nada mais salutar – mesmo com as exagerações. Afinal, os temas ali tratados são complexos e, aqui, no ambiente USP, estamos num lugar verdadeiramente acadêmico e universitário. Seguramente, o mais relevante do País.
Quem retornar ao texto anterior, sem parti pris, vai, rápido, notar que o seu argumento geral decorria de três premissas concretas, simples, irrefutáveis e, por isso, inconvenientes.
A primeira supunha que o contencioso Ucrânia versus Rússia não é uma guerra convencional tampouco da Rússia versus a Ucrânia. Trata-se de uma longa e implacável luta pela manutenção da hegemonia norte-americana sobre o sistema internacional. A segunda indicava que, malgrado a catadupa de embargos e sanções impostos à Rússia, os herdeiros de Tolstói, segundo estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), terão, em 2024, performance econômica melhor que a da Zona do Euro e dos Estados Unidos – os números indicam 2,1% de crescimento para a Rússia, 1,6% para os europeus e 1,0% para os norte-americanos. E a terceira premissa do artigo, visando especular as razões desse mistério dessa boa performance econômica russa mesmo sob a tempestade a contravento de embargos e sanções, lançava o debate sobre, senão o declínio, a aceleração da irrelevância do Ocidente.
Nada do que foi mobilizado no artigo adveio de inspirações nostálgicas de reabilitação da Grande Rússia, muito menos de tentações fantasmagóricas de normalização da tirania de enamorados de Stálin, como, claramente, tendem a ser os atuais sucessores de Pedro, o Grande.
O que foi feito ali no artigo – e está gravado no mármore deste espaço para quem quiser ver – não passou de um singelo e modesto convite à superação da sedução do binarismo simplificador que transforma questões extremamente difíceis e complexas de nosso tempo em termos de certo versus errado e, não raro, a interação ilusória de bonzinho versus malvado.
Ninguém pode imaginar, por um instante sequer, que o que ocorre nas cercanias de Moscou e Kiev, e irradia externalidades negativas para o mundo inteiro, seja algo diferente de a maior e/ou a pior tragédia do século XXI. Os ataques de 11 de setembro de 2001, a invasão do Iraque em 2003, a crise financeira mundial de 2008, as Primaveras Árabes a partir de 2010, o Brexit, a emergência de estranhos – feito Donald J. Trump, Jair Messias Bolsonaro, Viktor Orbán, Volodymyr Zelensky e outros – a postos supremos de nações dignas, soberanas, democráticas e defensoras do sufrágio universal, a pandemia de covid-19 e todas as suas implicações combinadas, em nada se comparam à insurgência de uma verdadeira terceira guerra mundial marinada na iminência de uma interposição de agressão nuclear. Momento pior que agora, talvez, somente, aquele “sábado negro”, daquele outono medonhamente dramático de 1962, quando da crise dos mísseis em Cuba e quando o mundo inteiro esteve tête-à-tête com o Armagedom nuclear anunciando o fim literal do mundo.
Mas, àquela época, 1962, o mundo ainda dispunha da abundância de homens de Estado – “l’homme d’État” – em lugar de meros gestores da ação estatal que os tempos atuais obrigam a denominar de chefes de Estado. Naquele momento agudo da história recente do após Segunda Guerra Mundial, Charles de Gaulle, Winston Churchill, Mao, Konrad Adnauer, Antonio Segni e tantos outros eminentes e verdadeiros homens de Estado estavam vivos e, com a sua vida, davam testemunho vivo da imperiosidade do trágico na vida e do trágico na história. Todos eles – goste-se ou não deles – traziam no corpo e na alma as marcas do traumatismo sem-nome e sem paralelos das guerras totais.
Essa ambiência conferia e impunha aos negociadores da tensão entre Cuba/URSS e Estados Unidos da América/Mundo Livre, em 1962, níveis de dignidade moral, grandeza espiritual e responsabilidade humana completamente inexistentes e inimagináveis no entorno dos presidentes Vladimir Putin, Joe Biden, Emmanuel Macron e afins que tentam levar a tensão ucraniana a um fim de paz e harmonia possíveis.
É também e por isso que, a partir das tormentas da Ucrânia, vive-se hoje, evidentemente, tempos de desespero e de consequências imediatas e futuras que só fazem desolar.
O choque inflacionário impulsionado pelas ofensivas de parte a parte – Estados Unidos e União Europeia versus Rússia e Rússia, China, países africanos, latino-americanos e do Oriente Médio –, para ficar apenas num exemplo, vem causando colapsos existenciais em todo o globo.
Ela foi publicada no mais recente Food Security Update, do Banco Mundial, do dia 9 de fevereiro de 2023, e recobre os dez países com maior impacto inflacionário sobre os preços da cesta de produtos básicos da dieta alimentar de seus nacionais.
Um economista insensível ou um amante imoderado de números vai traduzir essas eloquentes informações de modo franco e literalmente. Ressaltando, com razão e precisão, a exorbitância da elevação da inflação nominal e real nesses países todos. Vai redizer: 285% de aumento nominal nos preços no Zimbabwe e 48%, no Haiti. 41% de aumento real, novamente, no Zimbabwe e 13%, na Eslováquia.
Correto. Isto mesmo. É o que diz o estudo.
Entretanto, olhando mais de perto, esses países todos participam ou estão em vias de ingressar na caravana de Estados falidos. A sua população, geralmente, tende a ser expressiva e já vivia, antes da pandemia e mesmo antes da crise financeira de 2008, mal ou pessimamente mal, triste e incrivelmente precariamente.
Diante desse choque inflacionário indiscretamente pornográfico sobre produtos indispensáveis à nutrição corrente dessas pessoas derrotadas, humilhadas, esmagadas e escalpeladas pela globalização e por regimes políticos e econômicos internos, não raramente, impotentes e ineficazes, parece evidente que o problema majoritário contido nas evidências da tabela não pode se assentar em modelos econométricos de aferição de variação de inflação.
Não precisa frequentar nenhum desses países para saber que a sua população, nestes 12 meses de conflito na Ucrânia, está – e, infelizmente, vai, literalmente, continuar – morrendo de fome.
Deve haver por volta de 5 milhões de toneladas de cereais, trigo e milho, especialmente, apodrecendo em armazéns nas imediações dos portos ucranianos de Odessa e Mariopol por impossibilidade de escoamento devido aos bombardeios russos que destruíram essas estações portuárias. A Índia, segundo maior produtor e fornecedor de trigo do planeta, até prometeu “alimentar o mundo”. Perguntou-se, entretanto, desde sempre, e ainda se pergunta, por dúvida desatada, como. Ninguém, nem os indianos, consegue responder.
40% dos cereais que abasteciam, notadamente, países europeus e africanos, vinham da Ucrânia e da Rússia. Da Ucrânia não sai mais porque os russos inviabilizaram. Da Rússia também não se fornece mais porque os russos não querem. Da Índia, com uma das maiores e mais complicadas populações do mundo, sairá como e para onde? Privando indianos de sua soberania alimentar?
Mundo, vasto e triste mundo.
Evidentemente que muitos ucranianos e simpatizantes, civis e inocentes, morreram e seguem morrendo heroicamente pela sua pátria. Já ficou mais que claro que muitos desses ucranianos e afins perderam as suas vidas guerreando ante a fúria sanguinária dos mercenários do Grupo Wagner. Também parece notável que entre os russos, muitos, também, civis e inocentes, a face real da morte avizinhou várias de suas casas, famílias e memórias.
Mas, por clemência, por favor, por caridade, chegou o momento, com estes 12 meses de pandemônio ucraniano, de começar-se a mirar para muito além do exemplo desses homens e mulheres tombados e tombando nesses teatros de aflição ucrânio-russos e russo-ucranianos.
Os países indiferentes e/ou contrários à voracidade imperialista norte-americana – nesta altura da partida não há razão para seguir dourando a pílula sem nomear os problemas pelos seus devidos nomes – garantiram a boa performance econômica russa em 2022 e franqueiam as estimativas positivas para o biênio de 2023-2024. Mas está claro para todo mundo que a Rússia não vai garantir o retorno à normalidade em nenhum desses lugares do mundo que estão cada vez mais longe das zonas de influência de Paris, Berlim, Londres, Washington e Nova York.
Os choques macro e microeconômicos do conflito já chegaram e bateram às portas dos países pobres e remediados das bolhas dos emerging countries, na forma de recessão, taxa Selic de dois dígitos no caso brasileiro e fome generalizada entre os sobreviventes desse mundo cão e, ao que tudo indica, encantado pelo próprio tinhoso.
Criticou-se e aplaudiu-se muito a posição brasileira nas Nações Unidas que engrossou a narrativa da “retirada imediata” das tropas russas de solo ucraniano. Criticou-se e aplaudiu-se muito a intenção do presidente Lula da Silva em mediar o fim do conflito. Criticou-se e aplaudiu-se muito tudo que a Rússia ou a Ucrânia fizeram e fazem. Mas ninguém ou quase ninguém critica, aplaude ou, simplesmente, move singela atenção para o imenso legado de fome e desesperação que esse conflito já ancorou duradouramente no coração, na alma e no corpo dos povos latino-americanos, africanos e asiáticos.
Claro que europeus também sofrem, sofreram e sofrerão. Claro que ucranianos, russos e norte-americanos também entraram em entropia existencial. Mas, talvez, certamente, nada mais aterrorizante que a multiplicação de féretros – não somente de democracias – rotineiros de famintos e desolados que passar-se-á a notar mundo afora desde agora, intermitentemente.
Quem tem alguma idade somada a alguma cultura deve, por certo, recorrer, mesmo que apenas mentalmente, às inferências perturbadoras d’O futuro de uma ilusão de Sigmund Freud e d’O passado de uma ilusão de François Furet.
O primeiro refuta veementemente as crenças e paixões que teriam fundamentado religiões e, no limite, tinham ajudado a promover o inclemente mal-estar da civilização que o Ocidente presencia até os dias de hoje. O segundo fez o exercício de historicizar e sepultar as paixões profundas que pavimentaram a emergência e a consolidação do socialismo e do comunismo.
Essa verdadeira hecatombe civilizacional imiscuída em pasmaceira mundial tangida pelo contencioso russo-ucraniano-europeu-norte-americano-mundial aviva todas essas dissintonias de ilusões.
O lento, mas permanente, declínio do poderio norte-americano, evocado no artigo anterior e reforçado agora, coincide com a aceleração da irrelevância de todo o Ocidente e de seus atributos. É desconfortável reconhecer, mas, mais de 50% da população mundial vive, no momento que se escreve ou se lê estas palavras, sob regimes autocráticos e autoritários. Isso é péssimo, horrível, intranquilo, trágico, dramático desde uma perspectiva democrático-liberal. Mas, em outro diapasão, também não é nada confortável reconhecer e notar que a quase totalidade dos hodiernos regimes ditos democráticos mundo afora tem à sua frente chefes de Estado, não raramente, néscios, hipócritas, incoerentes, improcedentes, cretinos, bonifrates ou, simplesmente, despreparados.
Essas verdades inconvenientes marcam a ferro quente pesadamente um possível balanço do Ano I dessa nova fase da tensão mundial secular que envolve a Rússia. E, por ser verdadeira, essa constatação parece convidar quase que ao diálogo da última chance. Aquele que se prometeu haver antes do Juízo Final.
Ninguém quer – nem os russos – a continuação do conflito. Uma saída imediata precisa ser, mais que desejada, executada e executável. Mas, sem ilusões: uma coisa é terminar o conflito; outra, completamente diferente, é a construção de uma paz possível, viável.
Nas maquinações dessa paz possível – além de retirar do império da necessidade, da fome e da desesperação bilhões de pessoas ao redor do mundo – vai ser decisiva a retomada de questões fundamentais como quem, de fato, em todas as dimensões interseccionais de todos os lugares do planeta, somos e o que queremos, especialmente, ser e ter e legar às gerações futuras. Em contrário, além da intermitência de uma ilusão, enfatizada no artigo anterior, os tempos sombrios do devir vão tornar intermitentes o futuro e o passado de grandes ilusões.
(*) Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP