O nefasto efeito da Covid-19 no cofrinho da Previdência
Como se não bastasse todos os problemas que estamos enfrentando nas ações de combate à COVID-19 e a difícil tarefa de aplicar políticas públicas apropriadas para achatar a “dupla curva” – epidêmica e econômica – há um perigoso e alarmante movimento acontecendo no Brasil e no mundo que pode esvaziar o cofrinho da nossa aposentadoria: o despreparo das pessoas para administrar suas finanças pessoais e a histeria da classe política em tomar decisões sem medir suas consequências.
O cenário é realmente desafiador. O impacto da pandemia nos mercados e finanças pessoais pode tornar os poupadores mais vulneráveis a golpes ou levá-los a tomar decisões que podem prejudicar seus interesses a longo prazo. Governos de todo o mundo têm orientado seus cidadãos a manterem a calma e não se apressarem em tomar decisões que possam se arrepender depois. Naqueles países em que se permitiu que os cidadãos sacassem parte das suas economias, muitos perderam em poucas semanas o que levaram uma vida inteira economizando.
Em matéria publicada no dia 17 de abril de 2020, o renomado jornal The Washington Post pergunta e responde: The next covid-19 victim? Public pension funds (a próxima vítima da Covid-19? Os fundos de pensão públicos). Segundo a matéria, em questão de semanas a pandemia da Covid-19 derrubou a economia global e expôs a fragilidade dos sistemas públicos de pensão americanos. A estimativa é que um trilhão de dólares das carteiras públicas de pensão tenha sido evaporado, cerca de 21% dos ativos que pagam benefícios para servidores estaduais e municipais, comprometendo milhões de aposentadorias de funcionários públicos americanos.
Ao longo dos anos, os gestores americanos enfrentaram um dilema que faz parte do dia a dia dos fundos previdenciários: deveriam continuar investindo em títulos de menor risco e retorno ou buscar aqueles de maior risco e retorno, o que era mais importante: estabilidade a longo prazo ou retornos mais altos?. Ainda de acordo com a matéria, a partir da ideologia do “dever fiduciário” venceu o argumento de que a obrigação de um gerente de pensão era buscar o máximo retorno, e que qualquer coisa menos prejudicaria os aposentados.
Com o passar do tempo, argumentos como esse fizeram com que as legislaturas estaduais desregulamentassem gradualmente os poderes de investimentos das pensões públicas e admitissem investimentos mais arriscados. Para complementar, o colapso financeiro vivido em 2008 acabou pressionando os gestores americanos a buscarem investimentos mais arriscados quando a crise passou. Com o advento da pandemia global, todos os investidores saíram em busca das suas reservas ao mesmo tempo, fazendo com que décadas de apostas arriscadas dos gestores desses fundos culminassem com o cenário atual.
No caso do Sistema Brasileiro de Previdência Social, as decisões sobre o futuro da aposentadoria das pessoas recaem sobre os agentes políticos, que devem ter a exata noção do tamanho da sua responsabilidade. Mas, isso não se reflete nas ações que temos visto no Brasil. Segundo levantamento realizado em 2019 pelo Tribunal de Contas da União na previdência social, na última década as desonerações previdenciárias tiveram um crescimento real de 117,2%, enquanto a receita previdenciária cresceu apenas 24,6%. No mesmo período, as desonerações previdenciárias passaram de 0,5% para 0,9% do Produto Interno Bruto brasileiro.
No começo de abril de 2020, em resposta à situação específica em decorrência da pandemia relacionada ao coronavírus, o Governo Federal brasileiro permitiu que as contribuições previdenciárias devidas nas competências de março e abril de 2020 possam ser pagas em julho e setembro de 2020. Em meio a pandemia, em 15 de abril de 2020, a Câmara dos Deputados chegou a aprovar uma medida provisória editada pelo Presidente da República – conhecida como Contrato Verde e Amarelo.
Entre outras propostas, essa medida trazia a isenção por até 24 meses de contribuição previdenciária para os trabalhadores nela contemplados, mas que acabou não sendo votada pelo Senado Federal. E é certo que outras ações virão. Todas essas medidas seriam economicamente aceitáveis se não fossem para a conta do patrimônio do trabalhador brasileiro. Como afetam duramente o caixa do regime geral de previdência social (RGPS), devem vir acompanhadas de ações que atenuem seus efeitos (como um seguro ou uma garantia) e não simplesmente serem reportadas como “um buraco” nas contas previdenciárias.
Na previdência dos servidores públicos (RPPS), os efeitos da pandemia são ainda mais preocupantes. Além da forte oscilação no mercado financeiro nacional e internacional, que atingiu duramente as reservas (cofrinho) que estão sendo capitalizadas para o pagamento das futuras aposentadorias, diversas ações políticas têm sido costuradas. Ao aprovar o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus (PLP 39/2020) no dia 2 de maio de 2020, o Congresso Nacional suspendeu o pagamento das dívidas previdenciárias durante todo o exercício de 2020, que será diluído nas parcelas seguintes, e permitiu que lei municipal específica possa dispensar o pagamento da contribuição patronal. Quantas reformas terão de ser feitas para que o impacto dessas ações seja revertido?
Na previdência privada, os problemas se repetem. Além de os fundos de pensão terem de superar as ingerências políticas e a estagnação econômica enfrentadas nos últimos anos, o desemprego e o abalo no mercado financeiro trazido pela COVID-19 podem demorar anos para serem revertidos. A previdência complementar aberta também não tem como ignorar os efeitos que virão.
Como a maioria dos segurados tem o valor do plano de previdência privada calculado a partir das contribuições feitas ao longo dos anos e dos rendimentos desses valores acumulados (contribuição definida), o impacto da pandemia terá contornos diferentes dependendo da geração a que o segurado pertença. Entre os mais jovens, a queda da renda ou o desemprego podem atrapalhar suas escolhas para administrar as finanças pessoais durante o ciclo da vida. Entre os mais velhos, pode não haver tempo de recuperar as perdas que acabarão sendo realizadas.
Apesar do cenário sombrio que ora se apresenta, os efeitos da Covid-19 podem trazer grande aprendizado para a previdência brasileira. Um deles, já tratado na literatura, é que a interferência política nos assuntos dos fundos de pensões públicos não produz resultados desejados. Outro aprendizado é que esse pode ser um grande momento para a formação de uma consciência nacional sobre a importância da previdência para a vida das pessoas. Podemos finalmente discutir ações que impulsionem projetos de educação financeira e previdenciária para nossas crianças, jovens, adultos e velhos, formando uma base para que essas pessoas possam lidar com suas escolhas financeiras durante todas as fases da vida.
(*) Diana Vaz de Lima é professora de Contabilidade pública e previdência no Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais (CCA/UnB) e de Governança e accountability no setor público no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA/UnB) da Universidade de Brasília (UnB). Concluiu Programa de Pós-Doutoramento em Contabilidade e Controladoria pela FEA-RP/USP, é doutora em Ciências Contábeis pelo Programa UnB/UFPB/UFRN, mestre em Administração pelo PPGA/UnB, especialista em Administração Financeira pela Fundação Getúlio Vargas e contadora pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF). É coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Governos Locais (GEPGL) e membro da Academia de Ciências Contábeis do Distrito Federal (ACiConDF) e da Associação Brasileira de Contadores Públicos (ABCP).
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