O oceano a partir do espaço
Os benefícios das pesquisas realizadas durante as explorações espaciais são diversos e onipresentes na vida cotidiana: câmeras, lentes, filtros, próteses, GPS e muito mais. E se, em um passado recente, não era tangível ver o planeta Terra do espaço, hoje isso é possível em tempo real. Em setembro, o astronauta norte-americano Christopher Cassidy postou em suas redes sociais fotografias de parte do Estado de São Paulo, inclusive regiões do litoral, que realizou a partir da Estação Espacial Internacional, a ISS (da sigla em inglês, International Space Station). A mais de 400 km de altitude e cerca de 28 mil quilômetros por hora, a ISS é um grande satélite artificial tripulado que está em órbita terrestre há mais de 20 anos, a fim de ser uma “casa no espaço” para diversos pesquisadores e fornecer informações da Terra e do Universo.
Depois de 1957, quando o primeiro satélite artificial gravitou a Terra, o Sputnik – fruto do trabalho do engenheiro Sergei Korolev e outros cientistas, conferindo à União Soviética o pioneirismo na corrida espacial –, as invenções astronáuticas revolucionaram não só a astronomia, com a implementação de centenas de satélites em baixas e elevadas altitudes, mas outras ciências como a oceanografia. “A Terra é azul”, afirmou o russo Yuri Gagarin em 1961, primeiro humano a ver do espaço o planeta com predominância de água em sua superfície.
As tecnologias em órbita são ferramentas poderosas para fins científicos, militares, comunicacionais, navegacionais e ambientais. Elas permitem detectar desmatamento e queimadas; precisar locais com latitude, longitude e altitude; disponibilizar internet em lugares remotos; prever o tempo com a detecção dos deslocamentos de massas de ar, por exemplo. E mais: os satélites superam distância e vastidão e expandem a visão limitada dos olhos humanos para que estes possam observar o oceano amplamente, fornecendo informações como batimetria, temperatura, cor, biodiversidade, nível do mar e erosão costeira.
O oceano global é, abaixo da superfície, vasto, diverso, escuro e profundo – características que dificultam seu amplo mapeamento. E se os seres humanos só conseguem mergulhar no máximo a cerca de 330 metros de profundidade, como identificar locais que podem atingir mais de 10 mil metros? A batimetria é a distribuição de profundidades locais em uma área, a partir da superfície até o fundo, e pode ser inferida por ecobatímetros localizados em navios. A exploração petrolífera offshore aumentou o conhecimento sobre o fundo oceânico, mas este ainda continua muito limitado: enquanto a superfície do planeta Mercúrio já estava toda mapeada em 2016, a estimativa é que o fundo do oceano esteja mapeado por completo apenas em 2030, por meio do projeto Seabed – até hoje 85% não foram mapeados.
E se às profundezas é difícil chegar e enxergar, na superfície do oceano a história é outra. Com uma área de 360 milhões de km² (já que cerca de 70% da superfície do planeta é água salgada), se tornou possível e rotineiro estudar essas extensas regiões com sensores a bordo de satélites. Entre os dados que eles coletam estão as diferentes cores do oceano, que variam em tons de violeta, azul, verde, amarelo, marrom e vermelho. E os motivos para gerar essa paleta de cores podem ser luminosidade, profundidade, tipo de fundo, proximidade de rios etc.
Afastada dos continentes, a grande piscina do planeta é iluminada até aproximadamente 200 metros de profundidade, exibindo um predominante tom azul-violeta, devido à reflexão desses comprimentos de onda da luz solar – que tem comprimentos vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Nessas regiões existem poucas partículas e outros materiais, então, a luz interage principalmente com as moléculas de água, que reduzem rapidamente os fótons das cores vermelha e amarela, e por fim, os da cor azul, o mais curto e visível aos olhos humanos, como explica o livro Por que o mar tem essa cor? (2018), produção do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar/USP), sob a coordenação da professora Áurea Ciotti.
Para além de animais como a baleia-azul, que pode ter cerca de 30 metros, o oceano abriga formas de vida quase invisíveis. E a maior parte está na superfície oceânica, o lar de organismos microscópicos fotossintetizantes que compõem o fitoplâncton, a base da cadeia alimentar aquática, sendo fonte de alimento e oxigênio – estima-se que seja responsável por produzir 50% de todo o oxigênio disponível na atmosfera. Quando presentes em maior abundância, em locais ricos em nutrientes, esses organismos são capazes de alterar a cor da água para diferentes tons de verde e, em algumas situações, marrom ou vermelho, dependendo da espécie e da quantidade. Assim, oceanógrafos podem analisar as variações da cor do oceano registradas por imagens de satélites e relacioná-las com a abundância do fitoplâncton no globo, e, em algumas áreas, podendo até estabelecer quais são os principais organismos presentes.
Outros componentes alteram a cor do oceano: em regiões próximas aos grandes rios, que trazem muito sedimento, as águas apresentam tons marrons. Já em regiões próximas aos manguezais e às florestas, onde a água tem folhas em decomposição, as cores diferem. Deste modo, cada cor fornece dados que ajudam cientistas a determinarem, por exemplo, o impacto de enchentes ao longo da costa e o excesso de entrada de matéria orgânica para o ambiente marinho. A concentração em excesso de algas pode conter toxinas que têm potencial para matar a biodiversidade, incluindo recursos pesqueiros, e a decomposição dessa grande biomassa pode diminuir a oxigenação da água no fundo do mar, onde as diminutas células se acumulam.
O oceano “é habitado pelos maiores animais que já viveram na Terra e por bilhões e bilhões dos menores organismos: há mais seres vivos no mar do que estrelas no universo”, conforme apresenta o arquivo Biodiversidade Marinha – Um oceano, muitos mundos de vida (2012), produzido pelo Secretariado da Convenção sobre Diversidade Biológica. Milhares de espécies marinhas já foram descobertas, mas ainda há muito o que explorar. E como? Além de outros recursos robóticos, transmissores via satélite presos a diferentes organismos, como uma tartaruga-cabeçuda, permitem aos pesquisadores acompanhar toda uma jornada através da imensidão azul. O Projeto Monitoramento de Baleias por Satélite (PMBS) acompanha esses grandes mamíferos no litoral brasileiro. De forma complementar, no CEBIMar, a abundância do fitoplâncton em um ponto do canal de São Sebastião é monitorada continuamente desde 2014 pelo projeto Sistema de Monitoramento da Costa Brasileira (SIMCosta), e tem suas medidas utilizadas para aferir os dados obtidos pelos satélites.
Outra maneira de recursos espaciais ajudarem na compreensão do oceano é por meio de sensores que estimam a temperatura da sua superfície. Medições da radiação representadas em mapas mostram as variações da temperatura ao longo do tempo em diferentes regiões. Esse é um instrumento importantíssimo para contar o que está acontecendo dentro e fora do oceano, pois a temperatura pode influenciar a vida marinha, afetar o clima ao longo da costa, identificar locais de ressurgência (com águas frias de regiões mais profundas emergindo na superfície), como a região de Cabo Frio no Brasil ou costa do Peru, entre outros, conforme aponta a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos, a NOAA (da sigla em inglês, National Oceanic and Atmospheric Administration), no artigo “How are satellites used to observe the ocean?”.
Um dos impactos da mudança climática é o descongelamento do Ártico e da Antártica – áreas remotas onde satélites podem fornecer dados da extensão e espessura do gelo – e o respectivo aumento do nível do mar, que pode causar inundações de regiões costeiras e ilhas, como Kiribati (potencialmente o primeiro país que irá desaparecer), erosão costeira e destruição de ecossistemas importantes, como os manguezais. Conforme a NOAA, o nível do mar pode ser hoje medido com uma precisão sem precedentes, também com a ajuda de sensores a bordo de satélites, seguindo os mesmos princípios das técnicas utilizadas na batimetria.
Além dos satélites localizarem balizas de emergência para ajudar a salvar vidas humanas quando em perigo em barcos, aviões ou áreas remotas, esforços têm sido concentrados para que eles localizem uma das coisas que mais tem prejudicado a vida marinha: o lixo. O desenvolvimento de sensores e mecanismos para identificar a presença de lixo nos mares, incluindo partículas diminutas como os microplásticos, está sendo promovido pelas Agências Espaciais dos Estados Unidos (NASA) e Europeia (ESA) para que esse grande problema ambiental possa ser monitorado em escala global, revela o professor Alexander Turra, docente do Instituto Oceanográfico da USP.
As grandes navegações iniciadas no século XV foram essenciais para a humanidade perceber a vastidão do oceano. Mas a vida se estabeleceu nos continentes e, em 1872, a viagem da embarcação Challenger contribuiu para que a exploração oceânica começasse timidamente. Só no século XX descobriu-se que a vida nas águas salgadas era muito além da superfície banhada pela luz do sol e que se estendia para qualquer local das profundezas escuras.
Segundo a bióloga norte-americana Sylvia Earle, o oceano é “o coração da Terra”, pois abriga a maior parte da vida do planeta, além de ser o principal responsável por muitos dos fluxos dos elementos essenciais à vida. Porém, sua vastidão e complexidade tornam continuamente necessários superar limites tecnológicos e financeiros e aprimorar a formação de recursos humanos. E ainda, é necessário diminuir a distância entre as pessoas e esse imenso e fascinante horizonte azul para compreender sua grandeza e riqueza.
Hoje, os satélites e as informações que eles geram sobre o oceano são imprescindíveis para a promoção de seu uso sustentável, incluindo desde o desenvolvimento de serviços para companhias de seguro, como rastreamento de embarcações, até o planejamento do uso do espaço e dos recursos marinhos, complementa Turra.
(*) Tássia Biazon é pesquisadora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano, e Áurea Ciotti é docente do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da USP