Os perigos da poluição informacional
O advento das novas tecnologias digitais trouxe consequências positivas e negativas para a nossa condição enquanto agentes do conhecimento. É inegável, por exemplo, que a internet colaborou para a democratização do conhecimento em dois sentidos relevantes. Ela tanto facilitou o acesso à informação quanto ampliou as oportunidades para a produção e difusão do conhecimento.
Hoje cientistas e intelectuais têm acesso a acervos que vão muito além das bibliotecas físicas de suas universidades. Esse acesso mais amplo permitiu inclusive que cientistas dos países mais periféricos, como o Brasil, pudessem mais facilmente fazer ciência com base em bibliografia tão atual quanto aquela que é usada nos grandes centros mundiais de pesquisa. Nem precisamos enfatizar a revolução que essa democratização da informação representou e representa na vida de pessoas que mal podem contar com uma biblioteca pública na sua localidade.
As tecnologias digitais também aprofundaram a democratização do conhecimento ao possibilitar que mais pessoas participem da produção do conhecimento. Grupos sociais e pessoas que não tinham acesso às mídias tradicionais puderam encontrar um espaço nas mídias digitais para elaborar e difundir os seus saberes e culturas. Por mais que assimetrias de poder na produção e difusão do conhecimento ainda persistam, elas foram atenuadas pelas tecnologias digitais.
Ao mesmo tempo, as tecnologias digitais trouxeram obstáculos e dificuldades para a agência epistêmica. Por agência epistêmica entendo a nossa capacidade de refletir, avaliar evidência, formar crenças e adquirir e transmitir conhecimento de modo responsável.
Estar atento a possíveis vieses, buscar informação antes de formar uma opinião, variar as fontes de informação, dar a devida atenção e credibilidade ao testemunho dos peritos são algumas das maneiras pelas quais exercemos responsavelmente a agência epistêmica.
Dois obstáculos muito preocupantes à agência epistêmica responsável são a personalização da informação e a poluição informacional. O primeiro diz respeito à personalização dos sistemas de busca disponíveis na internet e também dos feeds de notícias nas redes sociais. A partir das buscas, cliques e “curtidas” do usuário, que fornecem informações diretas e indiretas sobre os seus gostos, preferências e mesmo a sua ideologia, esses sistemas criam um perfil que servirá de filtro para futuras buscas ou notícias a serem apresentadas ao usuário. Assim, o agente tenderá a encontrar apenas as notícias ou informações que são congruentes com os seus interesses e a sua ideologia ou visão de mundo, criando as chamadas “bolhas de informação”. Essa é uma maneira de dificultar a formação de crença não enviesada, por mais que o agente esteja atento a possíveis vieses.
A personalização da informação também fomenta os vícios intelectuais da arrogância e da mente fechada. Como tenderemos a encontrar apenas as informações que confirmam as nossas crenças e concepções, acabamos ficando ainda mais seguros delas, o que pode nos levar a desdenhar perspectivas de interlocutores que são contrárias às nossas, em vez que aproveitar o dissenso como uma oportunidade para a reflexão e a investigação.
As novas tecnologias digitais não ampliaram apenas o acesso à informação, mas também e sobretudo o acesso à desinformação. Assim como a poluição sonora dos centros urbanos torna quase impossível discriminar os sons das coisas, a poluição informacional limita a nossa capacidade de adquirir nova informação na medida em que não conseguimos mais discriminá-la do excesso de desinformação que polui o ambiente; é como procurar uma agulha no palheiro. Se antes podíamos confiar em algumas poucas fontes de informação e conhecimento, agora temos de distinguir, entre uma infinidade de fontes, quais são confiáveis e quais não são. Como fazê-lo se as próprias informações sobre quais fontes são e quais fontes não são confiáveis também se encontram misturadas com desinformação sobre o que é e o que não é confiável? Não é uma tarefa impossível, mas tornou-se muito mais difícil manter-se como um agente epistêmico responsável.
Não podemos subestimar o alcance da poluição informacional. Ela criou oportunidades para que pessoas mal-intencionadas coloquem obstáculos à capacidade do leigo de aprender com peritos. Por exemplo, embora haja consenso científico sobre o aquecimento global ter primordialmente causas antropogênicas, apenas 26% da população do Reino Unido acredita nisso, segundo um levantamento da BBC de 2010. Entra em cena a agnotologia, o estudo das estratégias da produção da ignorância.
Quando buscamos aprender pelo testemunho, temos de avaliar a credibilidade do falante ou da fonte de informação. Além disso, quando se trata de um assunto científico ou especializado, temos de saber se a comunidade científica relevante já tem um consenso sobre o assunto.
Ora, para minar a aprendizagem do leigo e mantê-lo na ignorância, pode-se confundi-lo quanto ao consenso científico ou quanto à credibilidade da comunidade científica. No caso da discussão em torno do aquecimento global, ambas as estratégias são usadas.
A produção de aparente dissenso científico junto à opinião pública sobre assuntos em relação aos quais há muitos interesses econômicos investidos é uma estratégia antiga e que foi usada pela indústria tabagista no século passado. Como disse um executivo da área sobre a pesquisa relacionando o hábito de fumar ao câncer de pulmão: “A dúvida é o nosso produto”. Estratégia similar é usada pelos agentes por trás de interesses econômicos que são ameaçados caso a hipótese antropogênica seja levada a sério pela opinião pública e pelos políticos. É sabido inclusive, segundo um relatório da Reuters de 2011, que a produção de aparente dissenso sobre a hipótese antropogênica é uma tática mais empregada para manipular a opinião pública nos EUA e no Reino Unido, onde há interesses fortíssimos da indústria ligada à produção de gás, óleo de xisto e de carvão, do que em países como Brasil, França, China e Índia.
Em 2009, hackers vazaram milhares de e-mails de pesquisadores associados ao Climate Research Unity, gerando o escândalo conhecido como “climategate”. Segundo os críticos, esses e-mails provariam que os cientistas conspiraram em favor da tese antropogênica. Supostas confissões de manipulação e rejeição de dados dos críticos à hipótese antropogênica estariam presentes nestes e-mails. Várias comissões independentes examinaram o caso, mas não encontraram evidência de má conduta científica.
Neste caso, cria-se um obstáculo para que o leigo aprenda do perito inundando a opinião pública com desinformação que ataca a credibilidade da comunidade científica. A situação é ainda mais drástica porque os leigos avaliam a credibilidade do cientista a partir de um estereótipo do que é a boa conduta científica. A filósofa Miranda Fricker chamou a atenção, no livro Epistemic Injustice, para o fato de que a avaliação da credibilidade do falante é sempre mediada por estereótipos. Estereótipos em si mesmos não precisam ser negativos ou errôneos. Quando, no entanto, se baseiam em um preconceito, isto é, quando são contrários à evidência, eles terão consequências drásticas para a avaliação de credibilidade do falante. É o que acontece, explica a filósofa, em sociedades sexistas. A voz da mulher acaba recebendo menos atenção do que deveria porque a avaliação da sua credibilidade é mediada por preconceitos que retratam a mulher como menos capaz. Isso gera o que ela chama de “injustiça testemunhal”.
Algo semelhante acontece quando o leigo avalia a credibilidade do cientista com base em um estereótipo equivocado do que é a boa conduta científica. Na imagem popular, o cientista deveria sempre levar a sério qualquer hipótese contrária às vigentes e considerar todos os dados disponíveis. Por exemplo, os cientistas do clima não deveriam desconsiderar a hipótese de que atividade anômala do sol é a causa principal do aquecimento global. Devido a essa imagem popular, muita gente viu as trocas entres cientistas nos e-mails que vazaram como evidência de que estavam conspirando e agindo de má-fé, pois eles de fato confessam descartar hipóteses muito improváveis. No entanto, como a filosofia da ciência de Thomas Kuhn nos ensina, a boa conduta científica exige um certo grau de dogmatismo e comprometimento com o paradigma vigente.
Não conseguiríamos aprofundar o conhecimento em uma área de estudo se a todo instante tivéssemos que discutir todos os pressupostos da disciplina e considerar todas as hipóteses possíveis sobre o tema. As mais exóticas devem ser descartadas ou ignoradas.
Além disso, qualquer dado, para ser considerado, precisa atender a critérios mínimos de validade e objetividade. Os dados que os cientistas do clima, nas trocas de e-mails, relataram ter rejeitado são dados que não atendiam a esses critérios. Neste caso, o problema não estava na conduta dos cientistas do clima, mas na imagem equivocada que o leigo tem do que seria a conduta científica correta.
Não bastasse o estereótipo equivocado que o leigo tem sobre a boa conduta científica, os valores e crenças relacionados a sua identidade também afetam a sua avaliação de credibilidade dos cientistas. Segundo um estudo de Kahan et al., quando a alegação de um perito vai contra os valores e comprometimentos mais arraigados de uma pessoa, ela implicitamente procura razões para desconfiar da credibilidade do perito. Entra em ação uma espécie de mecanismo de defesa daquilo que lhe é mais sagrado, a sua identidade. Por exemplo, a afirmação de que há aquecimento global por fatores antropogênicos parece levar à prescrição de que a atividade econômica deve ser mais regulamentada. Uma pessoa que tem uma ideologia liberal e individualista enxerga a hipótese antropogênica como uma ameaça à sua identidade cultural e naturalmente procurará razões para não confiar no perito. Seus valores jogam contra a credibilidade do cientista, não necessariamente contra a ciência. Isso explica por que se pode encontrar resistência à hipótese antropogênica mesmo entre pessoas bem letradas e informadas. Como salienta Kahan, esse obstáculo à capacidade da pessoa de aprender com o perito não é superado fornecendo mais informações para ela. A dificuldade aqui não diz respeito à falta de informação.
Para aqueles interessados em fabricar ignorância, esse fenômeno é uma mina de ouro. Basta fomentar associações entre hipóteses que se quer atacar e prescrições que são contrárias aos valores mais arraigados dos leigos ou de grupos sociais mais específicos para que estes procurem razões para duvidar da credibilidade dos cientistas que defendem essas hipóteses. Essa estratégia funciona mesmo com leigos bem informados e que talvez tenham uma imagem mais correta da boa conduta científica.
A capacidade do leigo de aprender com o perito é muito precária. Ela pode ser facilmente abalada por desinformação, tanto desinformação que tira proveito da sua imagem equivocada do que deveria ser a boa conduta científica quanto desinformação que tira proveito dos seus valores mais arraigados.
Parece paradoxal que a época em que a democratização do conhecimento atinge níveis surpreendentes, potencializando e beneficiando inclusive o próprio desenvolvimento da ciência, é também a época em que há mais obstáculos para que consigamos aprender com a ciência e usufruir do conhecimento que ela fornece. Basta notar o quão difícil tem sido, em plena pandemia, fazer com que as melhores recomendações científicas para o enfrentamento da emergência sanitária circulem e sejam acatadas pela opinião pública.
O desafio que temos à frente não é apenas educacional, embora esforços nessa área sejam fundamentais, mas também político e institucional; temos de aprender a lidar melhor com as novas tecnologias digitais e eventualmente regulamentá-las para evitar os seus efeitos mais perversos. Como salienta a filósofa sueca Åsa Wikforss, as tecnologias digitais são um fenômeno muito recente na história da humanidade. Ainda estamos descobrindo os seus efeitos, positivos e negativos, e teremos de aprender a usá-las mais sabiamente.
(*) Eros Moreira de Carvalho é professor associado do departamento de Filosofia da UFRGS.