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Problema mente-corpo: fronteiras e palpites

Por José Roberto Castilho Piqueira (*) | 04/08/2024 08:30

Depois de Walter Benjamin, Humberto Eco, Darcy Thompson e Isaac Asimov, aventurei-me por invadir a biblioteca da minha filha e encontrei um livro que comprei em 1998: Minds, Brains and Science – John Searle.

O exemplar tinha uma porção de grifos, alguns meus, outros dela. Os meus provocaram uma imensa saudade do grupo de ciência cognitiva do Instituto de Estudos Avançados, muito ativo na segunda metade dos anos 1990, comandado pelo professor Newton da Costa e pelo psiquiatra Henrique Schützer Del Nero.

Ali eram discutidos tópicos sobre lógica, completude, computação, inteligência artificial e, principalmente, sobre o problema mente-corpo, discussão permeada sobre dilemas a respeito do progresso da aprendizagem de máquina e da possível substituição do intelecto humano pela máquina.

Naquela época, essas discussões eram tidas parcialmente como insanas, mas o professor Newton e o Henrique eram gigantes, sobre cujos ombros pairam argumentações intermináveis, nos dias de hoje. Com eles aprendi que multidisciplinaridade se faz ouvindo e lendo, mais do que falando e escrevendo.

Em seminários apresentados pelo professor Nestor Caticha, tive o primeiro contato com as redes neurais artificiais, aprendi o que é uma rede “bayseana” e as principais diferenças entre aprendizado supervisionado e não supervisionado, em estruturas multicamadas. Entretanto, o ponto que mais me chamava a atenção na fala do professor Nestor era a insistência com que ele se referia ao conceito de “Consciência” como a principal fronteira da ciência atual.

Comecei, então, a tentativa de aprender um pouco sobre filosofia da mente e, nesse contexto, encontrei os trabalhos de John Searle, que tratam de maneira bastante clara, mesmo para um homem simples, da dicotomia aparente entre o nosso mundo mental, constituído de agentes conscientes, livres e racionais, e o mundo inconsciente das partículas físicas. Esse é o primeiro aspecto do problema mente-corpo discutido no texto do eminente filósofo.

Essa reflexão representa a tomada de importantes caminhos para o desenvolvimento da neurofisiologia, ao identificar regiões e ações físico-químicas do sistema nervoso a sensações aparentemente mentais, criando modelos científicos da integração mente-corpo. A interpretação dessa maneira de tratar o problema implicou importantes aportes para o entendimento da relação biológico-mental, com progressos marcantes para a biologia e para a clínica.

Paralelamente ao desenvolvimento da neurociência, desde quando John von Neumann estabeleceu uma arquitetura computacional análoga ao comportamento do cérebro humano, novas questões sobre a possível existência de consciência e novas formas de “vida in sílico” emergiram.

A discussão candente neste momento é relativa ao desenvolvimento dos algoritmos de inteligência artificial e aprendizagem de máquina. As questões de como nossa vida será afetada, da substituição de humanos por “Robocops” e de como a metodologia científica será afetada permeiam os seminários e artigos no âmbito acadêmico e fora dele.

Acredito que as respostas a essas questões não se restringem ao apertar de botões ou ao simples utilitarismo tecnológico. Passam pela consciência humana, e não das máquinas. As perguntas que realmente se colocam são relativas a como o desenvolvimento pode diminuir as desigualdades ou sobre a inclusão do respeito ao ser humano, ao planeta e às outras maneiras de ser (mineral-vegetal-animal) no dia a dia das decisões socioeconômicas.

É razoável pensar que as ferramentas computacionais, assim como todo progresso científico-tecnológico, podem melhorar ou piorar o mundo. Essa é, talvez, a questão para discussão da ciência que, para progredir, precisa, de fato, romper as barreiras entre as disciplinas tradicionais e, para isso, os computadores podem ser de grande valia.

Entretanto, há uma velha questão a ser colocada: os computadores são ou vão se tornar modelos efetivos para o comportamento da mente humana? Essa é a essência do novo problema que gosto de chamar de dicotomia “in sílico/in vivo” para o qual procuro ouvir (ler) John Searle. Para ele, há quatro fatores fundamentais para tornar essa possível equivalência plausível.

O primeiro é a existência da consciência, fator essencial para a existência humana, sem a qual não teríamos linguagem, amor ou humor. O segundo é a intencionalidade, fator que se refere a intenções e também a crenças, desejos, vontades, medos, amores, raivas, luto, desgosto, vergonha, orgulho e irritação. O terceiro é a subjetividade dos estados mentais: há fatos que nos entristecem, mas que não entristecem outras pessoas. Finalmente há a causalidade mental: nossos pensamentos e sentimentos mudam nossa maneira de agir produzindo efeitos no mundo físico.

Nos dias de hoje não é possível verificar esses fatores ligados ao discurso em primeira pessoa nas máquinas e mesmo nas pessoas. Pensar na sua compatibilização “in sílico/in vivo” é problema a ser explorado pelos múltiplos métodos disponíveis. Talvez essa compatibilização seja uma das fronteiras do conhecimento.

*Por José Roberto Castilho Piqueira, professor da Escola Politécnica da USP

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