Proteção da criação culinária: da propriedade intelectual ao patrimônio cultural
Alguns alimentos se destacam em relação aos outros pela sua aparência original ou distinta no mercado; outros, pelas qualidades de um ingrediente ou pelo seu modo de fazer repleto de história e cultura. A sobremesa em formato de charuto do chef Erick Jacquin e os populares Bentô Cakes são exemplos do crescente protagonismo da aparência das criações culinárias. Os vinhos do Vale dos Vinhedos e os doces de Pelotas demonstram a relevância das criações culinárias para o fortalecimento econômico e cultural de comunidades e regiões brasileiras.
Assim, as criações culinárias estão inevitavelmente vinculadas ao Direito, especialmente no que diz respeito à propriedade intelectual e ao patrimônio cultural. Contudo, qual é a proteção que o direito brasileiro oferece às criações culinárias?
De um lado, questiona-se se é possível a proteção da forma, decoração e/ou apresentação de criações culinárias por meio da proteção autoral e do desenho industrial. De outro lado, indaga-se se é possível a proteção de seus ingredientes e métodos de preparo, por meio das indicações geográficas e dos conhecimentos tradicionais, respectivamente.
A proteção da apresentação de criações culinárias por meio do direito autoral – que protege criação original emanada do espírito humano, conforme a Lei de Direitos Autorais brasileira (LDA) – é controversa por três principais motivos: (i) o fato de serem comestíveis, (ii) por terem a função de alimentar os seres humanos, e (iii) por carecerem de originalidade, em razão da função de servir de alimento.
Por si só, o fato de as criações culinárias serem efêmeras – já que consumíveis – é suficiente para afastar a subsistência do copyright norte-americano, que exige a fixação das obras em suporte tangível. Embora a LDA não contenha essa exigência, é importante considerá-la, visto que é um dos principais impeditivos em países cujo debate sobre o tema está mais avançado.
Além disso, por terem a função de alimentar as pessoas, as criações culinárias podem ser consideradas obras de arte aplicadas, se for possível dissociar o seu caráter artístico do funcional. A possibilidade de a dissociação, mesmo que conceitual, possibilitar a sua proteção autoral, contudo, é controversa.
Quanto à originalidade, tanto no direito brasileiro quanto no copyright norte-americano e britânico, o nível de criatividade para que a originalidade seja verificada é mínimo, o que é positivo para a incidência da proteção autoral a criações culinárias.
Por isso, considerando as variantes expostas, é possível a proteção autoral de criações culinárias.
Em relação ao desenho industrial – que protege forma ou conjunto ornamental de linhas e cores novo, original e que possa servir para fabricação industrial de um produto, consoante à Lei de Propriedade Industrial (LPI) –, é pacífica a possibilidade de proteger criações culinárias. Isso porque o fato de elas serem comestíveis e terem a função de servir de alimento não obsta o registro de desenho industrial. Ademais, a originalidade a ser constatada diz respeito à associação de determinada forma ou conjunto ornamental a um produto, não a forma ou o conjunto ornamental em si, o que facilita o seu reconhecimento. Inclusive, há registros ativos, na base de dados do INPI, de desenhos industriais de criações culinárias, como é o caso da pizza decorada com morangos dispostos como pétalas formando uma “flor”.
Sobre as Indicações Geográficas (IGs) – que protegem nome geográfico de área conhecida como de procedência de um produto ou que designa produto cujas qualidades se devam ao meio geográfico, conforme a LPI –, é interessante refletir sobre a proteção do nome geográfico relacionado a uma criação culinária utilizada em outra criação culinária como ingrediente.
É incontroverso ser possível a proteção do nome geográfico relativo a criações culinárias por meio das IGs, havendo diversos exemplos disso, como: os vinhos do Vale dos Vinhedos e os chocolates de Gramado. O principal problema é quando a criação culinária da IG é ingrediente, inexistindo previsão legal no Brasil sobre como lidar com essa hipótese, o que gera insegurança jurídica e maior risco de configurar práticas ilícitas.
Uma alternativa para determinar o que analisar nesses casos é seguir a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no caso Champagner Sorbet, que definiu, resumidamente, ser necessário que o ingrediente da IG seja uma das características essenciais da criação culinária. Isso amparado no fato de que quando, em uma criação culinária, o produto relativo à IG entra em contato com os diferentes sabores dos outros ingredientes, isso pode descaracterizar a sua qualidade específica e diferenciada, gerando o seu uso indevido.
Sendo assim, diante da insegurança quanto à legalidade do uso de ingrediente relacionado à IG e da dificuldade de preencher o requisito do caso citado, não é recomendado comercializar a criação culinária como contendo ingrediente relacionado a IG.
Sobre os conhecimentos tradicionais (CTs) – bens culturais imateriais, conforme a Constituição Federal, que podem ser registrados no Livro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) –, se determinado modo de preparo de uma criação culinária é um conhecimento criado e difundido entre gerações de uma comunidade, ele pode ser considerado um conhecimento tradicional.
O problema de estender a proteção do modo de fazer culinário do ingrediente à criação culinária é a configuração de apropriação cultural se a comunidade não identificar tal criação como parte de sua cultura. Esse foi o caso do refrigerante Crush Cajuína, comercializado pela Coca-Cola e relacionado ao modo de fazer da Cajuína.
Assim, não é possível que a criação culinária que engloba um ingrediente preparado com método que traduz CT detenha título de patrimônio cultural, sob pena de configuração de apropriação cultural.
Portanto, embora o ordenamento jurídico brasileiro permita a proteção de criações culinárias por meio dos institutos estudados, essa possibilidade está condicionada a algumas variantes e cautelas.
(*) Gabriela de Vargas Pochmann é graduanda da Faculdade de Direito da UFRGS, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas de Direito Comparado e Internacional da UFRGS e extensionista do Centro de Pesquisa e Estudos de Propriedade Intelectual da UFRGS.