Que pronome eu uso? Pessoas trans, nome social e a permanência na universidade
Numa reunião recente na Universidade, um colega perguntava ansiosamente: “mas, como faço para saber como chamar uma pessoa trans?”. Ao que outra colega que trabalha com questões de gênero respondia com serenidade: “pergunta para ela”.
Essa é uma dica muito importante, pois as pessoas trans devem ter sua identidade de gênero respeitada, tanto na sala de aula, como no uso dos banheiros de acordo com o gênero que se identifica. A regra, que é lei no Estado de São Paulo desde 2014, inclui ter o nome social na lista de chamada e em outros documentos da Universidade e das escolas. E é fundamental que os docentes e colegas aprendam a chamá-las pelo seu nome social, usando o pronome feminino, masculino ou neutro conforme as indicações da pessoa.
Mas quem são as pessoas trans? Essa é uma categoria que está sendo acionada por pessoas que podem ser vistas como femininas, masculinas ou não binárias, muitas vezes misturando elementos corporais e comportamentais que classificamos usualmente como femininos e masculinos. Elas podem se autodefinir em diversas categorias, como travesti, mulher trans, homem trans, transexual, transgênero e, mais recentemente, ganharam visibilidade aquelas que se definem como pessoas não binárias.
A teoria social tem demonstrado que a identidade de gênero é construída através de processos sociais e históricos e que ela não é determinada pela biologia ou pelos genitais de uma pessoa. Já discuti em outra coluna aqui sobre os termos “gênero” e “identidade de gênero” que se referem ao modo como cada pessoa se define. Eu me sinto mulher e fui assignada ao sexo feminino ao nascer, o que eu sinto como apropriado para mim e, por este motivo, dizemos que sou uma mulher cis.
Tive um aluno com um nome masculino na lista – seu nome social – que tinha sido assignado do sexo feminino ao nascer, mas não se percebia como uma menina, e na adolescência se entendeu aos poucos como um menino e hoje se define como um homem transgênero, ou simplesmente um homem trans. Encontramos também alguns mais jovens que querem manter uma identidade ambígua, recorrendo a elementos femininos e masculinos e, por vezes, preferem ser chamados de “elu” (ao invés de “ela” ou “ele”), buscando uma categoria nem feminina nem masculina.
Há um espectro de formas de se identificar que tem saído e escapado da oposição binária homem x mulher, que pareceu aos olhos de parte da ciência ocidental como “natural”. Entretanto, cabe lembrar que nem todas as pessoas nascem do sexo feminino ou do masculino apenas.
Há pessoas que nascem intersexuais – calcula-se que cerca de 1% da população tem ao nascer, ou terá ao longo de sua vida, caracteres masculinos e femininos, como aqueles que foram classificados como hermafroditas na antiguidade ocidental. Assim, nem mesmo a natureza das crianças ao nascer é puramente binária, embora as pessoas intersexuais sejam minoria.
É possível observar que diversas sociedades e grupos étnicos podem ter outras formas de classificar a diferença que a ciência ocidental analisa como “sexual” – há sociedades que incluem nome e espaço para pessoas de um terceiro gênero, além de homem e mulher. Na Índia, as hijras, e, em grupos indígenas da América do Norte, as pessoas com dois espíritos (two-spirited). Nos estudos sobre gênero e sexualidade de modelos culturais diversos, o Brasil inclusive é classificado como um país que teria uma categoria de terceiro gênero, as travestis.
Pode-se lembrar também os casos históricos de pessoas que transitaram pelos gêneros feminino e masculino ao longo da vida – como o Cavaleiro d’Eon, ou Mademoiselle Beaumont, que viveu parte da sua vida como homem e nobre e parte, como mulher. Ou Herculine Barbin, cuja história é comentada por Michel Foucault.
Com estes exemplos, quero reforçar a ideia de que pessoas que atravessam as fronteiras entre o masculino e o feminino não são novidades na história. O novo – e nem tão novo assim – nas escolas e universidades é um contexto em que pessoas trans têm direitos estabelecidos, como o uso do nome social. E o nome aqui é muito importante, assim como a escolha correta do pronome que a pessoa quer usar – ela, ele ou elu.
Ter direitos na letra da lei, no entanto, não significa ter garantias de viver, dado que é uma população muito estigmatizada ainda. O Brasil é o país que mais agride pessoas trans, com um histórico de violência brutal especialmente contra travestis e mulheres trans.
Retomo essas ideias para explicar a indicação que faço como presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP: na dúvida quanto ao nome social, devemos perguntar direta e gentilmente, e tratar a pessoa pelo gênero que ela afirma ser. Só deste modo podemos tratar com respeito e dignidade as pessoas trans, do modo como está estabelecido em termos legais.
Sim, é um novo aprendizado para muitos docentes e discentes, e eu também ainda estou no processo de aprender estas novas identidades. Porém, esse esforço faz parte de nosso necessário processo de inclusão e permanência de uma população que costuma ser agredida, moral e fisicamente, inclusive no ambiente acadêmico.
Nesse sentido, outro ponto de atenção nos leva ao uso dos banheiros em nossa universidade e à campanha “Libera meu xixi”. Mas, esse é assunto para uma próxima coluna.
(*) Heloísa Buarque de Almeida é professora da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP.