Quem são os indígenas?
Tenho ido por vários cantos do Brasil, para levar ao nosso país respostas a respeito da pergunta acima. Visto que uma grande parte da nação desconhece quem nós, indígenas, somos, decidi dar minha contribuição, no sentido de fazer com que mais gente saiba, de fato, quem são os povos originários que aqui habitavam em 1500. A título de informação inicial, farei aqui o uso do termo "parentes" para designar, em alguns pontos do texto, os indígenas, independente dos povos aos quais pertençam, visto que é a palavra, adotada de forma carinhosa, para nos referirmos a um outro indígena.
Muitos ainda pensam que um indígena é aquela pessoa vestida com roupas feitas com penas de aves, no uso de um cocar colorido e morador de florestas, nas quais ainda caça, pesca e navega por rios por meio de canoas. A realidade não é bem essa, apesar do conhecimento que temos, hoje, de vários parentes nossos ainda nas vivências dessas experiências e práticas citadas. Os indígenas, vários de nós, usam também a internet, são possuidores de modernos aparelhos de celular, estão em grandes centros urbanos, viajam de avião, passam férias em praias, estudam em graduações, especializações, mestrados, doutorados e pós doutorados, falam fluentemente a língua portuguesa e outros idiomas estrangeiros. As visões, as falas e os pensamentos estereotipados que foram passados ao Brasil por séculos, pouco a pouco, têm sido confrontados e derrubados.
Quando da chegada dos europeus ao Brasil, na virada dos séculos XV e XVI, éramos em torno de 3 a 4 milhões de indivíduos, falantes de 1000 línguas e já estávamos por aqui presentes há aproximadamente 13 mil anos. Hoje a população de indígenas, segundo o IBGE, em seu censo de 2010, está em 817.962. O estado com maior população dos nossos povos é o Amazonas, com 168.680 indígenas, seguido pelo meu estado natal, Mato Grosso do Sul, com 80.459 parentes. As línguas atualmente faladas não ultrapassam o número de 154. Nessa breve panorâmica, podemos ver o quanto, em 522 anos, fomos reduzidos, mesmo a história "oficial" passado, ao longo dos séculos, uma versão distorcida de como os povos indígenas foram tratados na chamada "construção" e progresso do país.
Ao pensarmos na linha histórica relacionada à confecção do atual formato do Brasil, uma das situações que nos ocorreram foi a escravidão que também nos foi imposta. Por anos, passou-se por meio de veículos oficiais que a escravidão foi sofrida apenas pelos africanos. Essa lamentável ação desumana foi também executada sobre meus antepassados. Juntamente com a população negra hoje do Brasil, nossos povos indígenas têm sido voz firme às atuais gerações na importante informação de que fomos brutalmente atingidos pelas ações de ganância e de violência, em nome de um dito progresso que se falava para a construção desta nação. Em nosso meio chamamos esse ato de resistência e voz dos povos indígenas. Eventos como a Guerra do Paraguai, no século XIX, os quais tinham uma versão, por décadas, repassada ao país de forma oficial estão sendo revistas e, passo a passo, o Brasil conhece que os indígenas terenas do então Mato Grosso não foram bem "vencedores" na ocasião, mas sim grandes perdedores, por terem, após o retorno da batalha final, sido saqueados de suas terras originárias.
Nos dias atuais, nossa presença é muito significativa no Brasil todo e em outras partes do mundo. Não estamos apenas nas florestas e nas matas, como muitos ainda pensam. Nossa representatividade, hoje no país, ocorre de norte a sul, de leste a oeste. Há, sim, muitos povos, por ora, distantes dos centros urbanos, como, por exemplo, os kaiapós, na Amazônia, e os kaiabis no estado do Mato Grosso. Também estamos em aldeias em contexto rural, como o exemplo dos terenas da minha aldeia de origem, a Ipegue, localizada no município de Aquidauana, cidade a 141 quilômetros de Campo Grande, aqui no Mato Grosso do Sul. Aldeias como a Ipegue têm características fortemente rurais, no entanto não se encontram tão distantes de centros urbanos, tendo, inclusive, muitos traços de um bairro mais afastado de uma cidade. Há vários indígenas que moram também em aldeias urbanas, como os terenas da Aldeia Marçal de Souza, moradores no Bairro Tiradentes, na capital sul-mato-grossense Campo Grande. Uma outra aldeia urbana que pode ser citada é a Kakané Porã, do povo kaingang, na cidade de Curitiba, estado do Paraná. Também podemos citar indígenas que não moram em aldeias, como o meu exemplo, um indígena que nasceu em um centro urbano, no caso, Campo Grande, e que mora até hoje em uma cidade, apesar de já ter residido nas aldeias Ipegue e Jaguapiru, esta última localizada na segunda maior cidade aqui do estado, Dourados. Por último, posso também falar dos parentes que, hoje, residem fora do país, por questões de estudos e de trabalho. Assim, podemos afirmar, com fato e exemplos bem vivos, o quanto nossa presença hoje se faz bem distante e dispersa, por todos os cantos e lugares do Brasil e do estrangeiro.
Destaco aqui também algumas celebridades em nosso meio indígena. O primeiro que cito é o advogado terena Luiz Henrique Eloy, que, antes da chegada aos seus 40 anos de idade, concluiu já dois doutorados, uma na área da Antropologia e outro na área do Direito. Nosso parente atua como ativista de nossas causas, inclusive já realizado a defesa dos povos originários do Brasil no Supremo Tribunal Federal. Recentemente, ele foi palestrante em uma das universidades de maior excelência no mundo, a Harvard. Lembro aqui também do indígena Ailton Krenak, grande destaque nacional na área da educação e da filosofia. Palestrante de renome em todo o Brasil, já escreveu vários livros, foi destaque no ato da criação da Constituição Federal de 1988 e, há pouco tempo, entrevistado em rede nacional pelo famoso jornalista Pedro Bial em seu programa no canal de TV Globo. Um destaque especial também ao Grupo Brô Mc's, o primeiro grupo de rap indígena do Brasil, formado no ano de 2009, composto por jovens guaranis kaiowás da região sul do Mato Grosso do Sul. Esse grupo alcançou grande repercussão, sendo também representante de nossa resistência e ação, tendo seu auge apresentando-se na edição de 2022 do Rock in Rio.
Somados aos parentes lembrados há pouco, temos sido muito abraçados e apoiados por outras pessoas e ações pelo país todo, para que muito mais brasileiros estejam a par de quem somos e de como fomos tratados desde a chegada dos europeus por aqui e nos anos que se seguiram na chamada "construção" da hoje nação denominada Brasil. De forma justa, cito os trabalhos e ações concretas e pontuais da Articulação dos Povos Indígenas (APIB) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entidades muito atentas e presentes em nossas causas. Aliado a tudo isso, neste ano de 2022, ao ingressar no Programa de Mestrado em Ensino de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), recebi inspiração e motivação a pesquisar os motivos sociais e históricos que levaram muitos indígenas a não mais falarem os seus idiomas maternos, de forma especial, a Aldeia Ipegue, local de vivência de meus ancestrais e que hoje tem a maior parte de sua população não mais falante da nossa língua nativa. A pesquisa teve início no primeiro semestre deste ano e terá já suas conclusões em 2023. Somente, ao pensarmos os motivos que levaram muitos parentes a abandonarem suas línguas, temos material suficiente para falarmos de uma situação pouco conhecida pelos brasileiros, fora os demais assuntos que a nação conheceu, ao longo dos anos, sobre nossos povos, de forma distorcida, fantasiosa e encapada por grupos da elite histórica do Brasil, estes com interesses próprios para que a maior parte do país continue sem conhecer quem fomos, quem somos e o que esperamos, com ações concretas, falas e muita resistência, de nosso futuro. Destaco a orientação acadêmica que tenho recebida da Professora Sandra Cristina de Souza, Pós Doutora em Antropologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley (Estados Unidos), esposa do também indígena terena pastor batista Emílio Paulo Filho.
Como conclusão, digo que seguimos na luta e na resistência, ao mostrarmos para o Brasil quem, realmente, somos hoje. Objetivamos, com base naquilo que a Constituição preconiza, que nossos direitos sejam respeitados, nossa identidade e cultura prossigam vivas e que o direito originário às nossas terras seja concretizado. Que Itukoóviti (Deus, na língua terena), abençoe-nos e nos dê de Sua graça, no prosseguirmos nesta caminhada.
(*) Kleber Gomes é indígena terena, pastor batista, professor na Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS e mestrando em História pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
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