Quem tem medo da inteligência artificial?
Vamos abordar a questão inicialmente sob uma perspectiva histórica e socioeconômica. Após o mercantilismo colonial, que imperou do Século XV ao final do XVIII, veio a Revolução Industrial no Século XIX, a partir de quando as máquinas passaram a dominar os processos de produção e a determinar fenômenos socioeconômicos.
Quase dois séculos depois, nos anos 1980, a queda do Muro de Berlim marcou a substituição do regime industrial pela globalização da economia. A globalização derrubou as fronteiras econômicas entre os países e marcou também a expansão da digitalização.
Agora, tudo indica, vivemos outro momento de inflexão: a datificação e automação da sociedade. A velocidade das transformações atualmente é estonteante. Fica até difícil compreender o que ocorre em meio ao turbilhão de informações.
Embora a inteligência artificial não seja nova, o “boom” internacional causado pela divulgação do ChatGPT no ano passado pode ser considerado um ponto de inflexão, um marco histórico da transformação social e econômica mundial que estamos vivendo.
As mercadorias mais valiosas agora são os dados carregados de informações e não mais os produtos industrializados nem as commodities. São os enormes bancos de dados, os big data que podem conter informações pessoais geradas sem que saibamos quando realizamos ações banais na internet. Estes dados são coletados e processados por algoritmos e sistemas de inteligência artificial. São eles eles que movem a novíssima economia dominada pelas corporações gigantes da tecnologia, também conhecidas como big techs.
Os sistemas de inteligência artificial estão cada vez mais eficientes e difusos graças justamente à abundância de dados que os alimentam, resultantes dos enormes avanços tecnológicos alcançados neste início de década.
Os caminhos para a humanidade inserida nesta nova realidade ainda são incertos. Alguns apontam para um excepcional aprimoramento da mente e do corpo humanos, possível graças à associação das pesquisas biológicas com as tecnológicas. Atualmente, órgãos e membros do corpo humano já podem ser substituídos por outros, artificiais e mais eficientes que os naturais. Em breve, os sistemas naturais de defesas contra doenças também poderão ser auxiliados por defensores nanotecnológicos, inteligentes, inseridos no corpo humano. O cérebro poderá ser associado a sistemas informatizados para melhorar a performance mental.
O futuro do corpo humano, tudo indica, é ciborgue. É isso mesmo, a ficção se torna rapidamente realidade. Estamos caminhando para o super ser humano, que viverá mais, com mais saúde, e até, alguns acreditam, poderá conquistar a imortalidade.
No trabalho, o homem vem sendo substituído pela automação, pelos algoritmos, pelos sistemas de inteligência artificial. A automação acarreta eficiência bem maior que a humana em muitas funções, o que tende a acentuar-se cada vez mais. O outro lado da automação do trabalho é a obsolescência de muitas profissões. Muitas delas simplesmente não serão mais necessárias.
Ainda quanto ao trabalho, há uma grande diferença em relação a outros momentos de inflexão pelos quais passou a humanidade. Na Revolução Industrial e na globalização as profissões e postos de trabalho extintos foram substituídos por outros, e os trabalhadores fácil e rapidamente treinados para novas funções. O treinamento agora é bem mais sofisticado, mais díficil para a maioria. Na verdade, a realidade é que não haverá mais necessidade de grande parte das atuais profissões e dos seus trabalhadores.
Diante deste quadro, as sociedades mais desenvolvidas e organizadas já estão providenciando a diminuição das jornadas semanais de trabalho, porém sem redução salarial. Também discutem o estabelecimento uma renda mínima vitalícia aos desempregados temporários pela automação, aos que não mais voltarão ao mercado de trabalho e até aos jovens que nunca trabalharam e jamais trabalharão.
Não se trata de renda mínima de auxílio contra a miséria e a fome, como temos aqui no Brasil, mas renda capaz de manter o cidadão digna e confortavelmente, assim como vive atualmente a classe média nos países desenvolvidos. Isto parece utópico demais para nós brasileiros, que sequer resolvemos muitas questões sociais básicas, algumas até cuja origem remonta ao colonialismo ou à Revolução Industrial.
Como se nota, a questão é bem mais complexa para os países pobres ou em desenvolvimento, que concentram a grande maioria da população do planeta e contingentes enormes de pessoas sobrevivendo sem o mínimo necessário à dignidade.
Então, é bem possível que a datificação da sociedade agrave as diferenças entre os países pobres e ricos, e dentro deles entre as pessoas ricas e pobres. Enquanto as pessoas ricas poderão tornar-se super humanos e até imortais, os pobres tendem a virar trabalhadores obsoletos. Trabalhadores que não poderão reivindicar melhores salários e condições de trabalho porque suas profissões não mais existirão, não serão mais necessárias.
Para o jornalismo, que me interessa de perto porque é meu foco de pesquisa atual, a inteligência artificial não é novidade. Desde a primeira metade da década passada alguns veículos jornalísticos usam a automação, que cresce rapidamente nas salas de redação.
Algoritmos e sistemas de inteligência artificial estão nos processos de levantamento de pautas, apuração, produção de notícias, elaboração de textos, edição, formatação de páginas e notícias para diferentes plataformas. Os veículos jornalísticos também se valem de técnicas para otimizar a distribuição das suas notícias nas redes sociais e para melhor rankeá-las nos mecanismos de busca, ferramentas que são movidas algoritimicamente.
Para ser ter uma ideia, no final do ano passado, aproximadamente 30% dos jornais de todo o mundo adotavam algum mecanismo próprio de inteligência artificial. E agora, há pouco, no fim do primeiro semestre de 2023, quase 50% das salas de redação já usavam sistemas de inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, Dall-E e Bard para a produção de notícias.
Embora a maioria dos jornalistas em todo o mundo acredite que o futuro da profissão será o hibridismo entre o trabalho humano e da inteligência artificial, pessoalmente acredito que o jornalista sairá em desvantagem, com perda de postos, aumento da já excessiva carga de trabalho e execução simultânea de múltiplas tarefas.
Para encerrar, relembro a pergunta título deste artigo: quem tem medo da inteligência artificial? Não, pessoalmente não temo a inteligência artificial. Mas temo as consequências do que aqueles que dominam mundialmente a produção de algoritmos e de sistemas de inteligência artificial estão fazendo e farão com ela. Temo que seus objetivos sejam simplesmente focados no lucro e ignorem questões sociais, com parece estar ocorrendo. É disso que eu tenho medo.
(*) Zanei Ramos Barcellosi é professor adjunto do Departamento de Jornalismo (JOR/FAC). Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado na Universidade Federal de Uberlândia sobre as interfaces entre o jornalismo e a inteligência artificial.