Trinta anos sem Marçal de Souza
“Santo Papa: nosso povo está morrendo!” Essas palavras de Marçal de Souza ainda ecoavam nas consciências dos cristãos do planeta quando, trinta anos atrás, em pleno processo de decadência da ditadura, Mato Grosso do Sul voltava às manchetes da imprensa mundial, dessa vez pelo covarde assassinato do imortal líder guarani cujas palavras haviam sensibilizado o Papa João Paulo II em sua visita ao Brasil, três anos antes.
Na ardilosa trama feita para golpear de morte o incômodo “Tupã’i” (deus-pequeno) – por ser sábio e leal ao seu povo –, os mandantes e executores tentaram transformar o hediondo crime em uma bizarra cilada por motivações passionais, no afã de perpetrar-lhe um segundo assassinato, o de sua memória: depois de morto, mais indefeso ainda.
Numa sociedade que vive de aparências, num primeiro momento a estratégia foi vitoriosa. Mas os setores organizados e a cidadania local repeliram à altura e esperam até hoje pela reparação dos danos morais sofridos pelo líder e sua comunidade.
Darcy Ribeiro, o grande brasileiro que dignificou a nacionalidade, foi preciso ao se referir, na missa de sétimo-dia, ao Marçal dos Guarani e de todas as etnias vitimadas pela ganância, desde os tempos sem lei da escravidão e da colonização que envergonham a espécie humana: “Este estado está manchado de sangue com a morte de Marçal de Souza.”
A ditadura acabou, o muro de Berlim caiu, a guerra fria passou para a história, mas a condição de penúria, desrespeito e vitimização pela pistolagem dos povos originários não continua igual porque se agravou. Nem parece que a Constituição Federal de 1988 consagrou uma série de direitos à cidadania brasileira, sobretudo aos índios.
Nem parece que já tivemos um trabalhador metalúrgico eleito e reeleito presidente da República pelo voto direto. Em Mato Grosso do Sul, o partido que governa é o mesmo da época do assassinato de Marçal, ainda impune.
A Assembleia Constituinte fizera constar no texto constitucional prazo de cinco anos (esgotados em 1993) para a demarcação das terras indígenas em todo o território nacional, coisa que até o momento sequer são resolvidas as que são verdadeiros focos de conflitos armados.
Há um verdadeiro jogo de empurra nas altas esferas de decisão dos três Poderes constituídos do País, e as grandes empresas midiáticas se encarregam de disseminar factoides para justificar tanta violência contra uma população de excluídos de tudo.
Os sul-mato-grossenses não podem se omitir, não podem parar de se indignar, diante de tanta impunidade, que, aliás, estimula e encoraja os adeptos da tradição do “sabe com quem está falando?”, curiosa e inexplicavelmente praticada por forasteiros que chegaram às terras de nossos generosos ancestrais com uma mão na frente e outra atrás, sem absolutamente nada, além da ganância, da sanha e da ousadia atrevida dos que nada têm a perder...
Durante a luta contra a ditadura, havia uma consigna nos movimentos sociais que advertiam para a solidariedade à causa indígena. Dizia ela: “O destino do índio está na consciência do branco.” Nem é preciso dizer que os povos indígenas mudaram para melhor esse apelo, talvez bem intencionado, mas totalmente descolado da realidade histórica.
Ainda que ao custo do sangue e da vida de líderes como Marçal e mais recentemente Oziel – o terena assassinado impunemente em Sidrolândia cinco meses atrás –, nossos povos ancestrais não se acovardam e escrevem sua historia com dignidade e coragem, para nos honrar e ensinar a não nos curvarmos diante da prepotência e da opressão.
(*) Semy Ferraz é engenheiro civil e secretário de Infraestrutura, Transporte e Habitação de Campo Grande.