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Um dia de consciência negra e 364 dias de consciência humana

Joanara Hanny Messias Gomes (*) | 16/11/2020 11:40

A Lei n. 12.519/2011 institui oficialmente no calendário brasileiro o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra e também o dia para homenagear o líder negro Zumbi dos Palmares, já que a data remete ao dia de sua morte. No Mato Grosso do Sul não é feriado, mas em alguns Estados da Federação foi decretado feriado.

Zumbi dos Palmares nasceu livre, mas foi escravizado ainda criança, foi um símbolo na resistência contra a coroa portuguesa em defesa dos escravos que fugiam do trabalho desumano e das torturas nas fazendas da época e se refugiam nos quilombos. Zumbi foi líder de um dos maiores quilombos do país, o Quilombo de Palmares, situado no que hoje é a região de fronteira dos estados de Pernambuco e de Alagoas. Não podemos deixar de mencionar que ao lado de Zumbi, também estava sua esposa Dandara de Palmares, a qual juntamente com Tereza de Benguela são a materialização do símbolo da força da mulher negra na luta contra a opressão da escravidão no Brasil.

No Mato Grosso do Sul, dos 79 (setenta e nove) Municípios, 15 (quinze) possuem quilombos de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, num total de 22 (vinte e duas) Comunidades, quais sejam, Aquidauana: Furnas dos Baianos; Bonito: Águas do Miranda; Campo Grande: São João Batista, São Benedito/Tia Eva e Chácara do Buriti; Corguinho: Furnas da Boa Sorte; Corumbá: Família Ozório, Família Maria Theodora Gonçalves de Paula e Campos Correia; Dourados: Dezidério Felipe de Oliveira – Picadinha; Figueirão: Santa Tereza/Família Malaquias; Jaraguari: Furnas do Dionísio; Maracaju: Colônia de São Miguel; Nioaque: Família Cardoso, Famílias Araújo e Ribeiro, Família Romano Martins da Conceição e Família Bulhões; Pedro Gomes: Família Quintino; Rio Brilhante: Família Jarcem; Rio Negro: Ourolândia; Sonora: Família Bispo; e Terenos: Dos Pretos.

O dia da consciência deve nos remeter a uma reflexão da situação atual dos negros no Brasil. Isto porque a abolição da escravidão ocorreu há pouco mais de 130 anos, fomos o último país das Américas a erradicar a escravidão com a Lei Áurea em 1.888, e isto só ocorreu diante da pressão de outros países à época. Hoje, 56% (cinquenta e seis por cento) da população se declara negra, ou seja, somos aproximadamente 211 milhões de habitantes, dos quais 56% (cinquenta e seis por cento) se autodeclararam preta ou parda. No Mato Grosso do Sul, esse número é de 2 53% (cinquenta e três por cento) da população, mais da metade. A mão-de-obra dos negros sequestrados da África e trazidos para o Brasil foi responsável por gerar riqueza ao país e para coroa portuguesa por mais 300 anos; no entanto, hoje os negros são a maioria da população e também a maioria daqueles que estão em situação de pobreza e miséria.

No Brasil esse dia é extremamente importante, porque objetiva trazer a consciência de que o racismo é nefasto para população negra e existem diversas formas de combatê-lo.

O racismo é uma forma de preconceito e discriminação baseada na raça, fruto de um consciente coletivo criado sobre a cor da pele negra, na qual o fenótipo, que é o conjunto de características físicas de uma pessoa, no caso das pessoas negras a pele com concentração alta de melanina, o cabelo crespo, os traços do rosto como lábios e nariz grossos, é o escolhido como característica negativa, e com base nessa negatividade atribuem, sem nenhum fundamento, a pecha de serem violentas, amaldiçoada, mal caráter, sujas, indignas, etc. Essas atribuições acabam por gerar a segregação da pessoa negra, sua exclusão e subalternidade social.

Racismo é um crime histórico que foi criado pelo ódio à etnia negra e que matou e continua a matar milhares de pessoas negras em todo o mundo.

Não é demais lembrar que no Brasil o racismo é crime previsto na Lei n. 7.716/89, na qual vêm descritos os tipos penais e as penas para quem comete o crime, as quais podem variar de 01 a 05 anos a depender do crime cometido. O crime de racismo é inafiançável e imprescritível.

Há também a previsão no Código Penal da injúria racial, prevista no art. 140, parágrafo 3º, que consiste em ofender a honra de alguém se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa, além da pena correspondente à violência para quem cometê-la. Difere do crime de racismo, pois este atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Já a injuria racial geralmente está associada a intenção de ofender a honra da vítima se utilizando das características de sua raça.

O dia da Consciência Negra precisa trazer a informação de que o racismo recreativo é crime. O racismo não pode ter como desculpa o humor e a piada.

Construir estereótipos negativos sobre os negros com o argumento que está 3 produzindo humor e diversão não pode ser aceito, pois reafirma a desigualdade racial, e usa-se do humor para expressar a hostilidade e negatividade contra uma raça, que está em desvantagem social.

Do mesmo modo, o racismo não pode vir disfarçado por trás das palavras. Diversas expressões usadas são herança do racismo no Brasil colonial. Como por exemplo, podemos citar as expressões “serviço de preto”, “samba do crioulo doido”, “não sou tuas negas”, “chuta que é macumba”, “a coisa tá preta”, “cabelo pixaim/ruim/duro”, dentre outras. Tais expressões não podem ser reproduzidas, mesmo com a desculpa de que é da cultura brasileira, pois isto seria a naturalização do racismo. Não podem ser reproduzidas pois são resquícios da escravidão e decorrem das condições desaforáveis e desumanas que viviam – e ainda vivem – os negros, tais expressões são ofensivas e difundem o racismo.

Há quem diga que o Brasil não é um país racista, que não existe racismo no Brasil. Isso não é verdade. Para quem não acredita no racismo no Brasil, basta prestar atenção nos números da situação da população negra, o racismo vem de avalanche com as estatísticas.

Vem no encarceramento em massa de pessoas negras. No último Anuário Brasileiro do Fórum de Segurança Pública, foi constatado que 66% (sessenta e seis por cento) dos presos no Brasil são negros, isto significa que 02 em cada 03 presos são negros; se consideramos que em 2020 a população carcerária é superior a 657 mil presos, seriam mais de 430 mil negros cumprindo pena privativa de liberdade.

Na segregação da população das favelas, assentamentos e ocupações, nos quais são compostos, de forma predominantemente, por pessoas negras e são sujeitos da política do deixar morrer, diante da total escassez ou ausência de políticas públicas para minimizar os efeitos da pobreza extrema.

Também vem estampada com tinta de sangue na violência contra o corpo negro, principalmente contra os jovens negros que sofrem verdadeiro genocídio. Os negros são as maiores vítimas de assassinatos, cerca de 75% (setenta e cinco por cento), sendo que 08 em cada 10 pessoas mortas em confrontos ou não com a polícia são de negros, conforme dados do Anuário Brasileiro do Fórum de Segurança Pública de 2020.

Na falta de representatividade de pessoas negras em todos os setores, seja nas instituições de ensino superior, em cargos de poder de empresas privadas ou em cargos em empresas públicas, em razão de concurso ou comissionados. Seja no Poder Executivo, no Poder Legislativo e no Poder Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria Pública. Também na teledramaturgia, nos programas de TV, no cinema, onde os negros encontram pouco espaço de atuação e quando encontram é justamente para representar a escravidão ou a própria exclusão dos negros.

Por isso é importante fortalecer as ações afirmativas com a instituição de cotas para pessoas negras, tendo em vista que as instituições de ensino superior, cargos de direção e chefia em empresas privadas e as carreiras públicas, por exemplo, são instituições majoritariamente brancas. Em relação a instituição de política de cotas raciais em concursos públicos como fundamental instrumento para atingir equidade racial é crucial lembrar que no Mato Grosso do Sul está vigente a Lei n. 3.594/2008, que garante 20% das vagas dos concursos públicos para os negros, replicando os termos da Lei Federal n. 12.990/2014, que garante o mesmo percentual no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Outrossim, o racismo vem esculpido na discriminação e no preconceito das religiões, cultos e festividades de matriz africana e povos de terreiros. Neste aspecto o racismo encontra o seu maior contrassenso, haja vista que a cultura brasileira foi construída com influência da cultura de diversas tribos africanas, a maior festa da cultura da brasileira é festejada e arquitetada pelos negros brasileiros em sua grande maioria, muitos moradores das comunidades e das favelas do país.

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial ao funcionamento da Justiça, e dentre outras, tem atribuições de promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. Nesta senda, a Defensoria Pública atende em sua maioria a população negra, como consequência lógica de ser a população mais hipossuficiente no Brasil.

Por isso, trabalhamos a temática do racismo dentro da Defensoria Pública, para que esta enquanto intuição e suas defensoras, defensores e servidores possam ser ferramentas contra a desigualdade e discriminação étnico-racial. É preciso lutar para a garantia e informação dos direitos das minorias relacionadas à raça, principalmente como a observância das diretrizes e normas do Estatuto da Igualdade Racial, que este ano completa 10 anos, pois a Lei n.12.288 foi publicada em 2010 e está vigente deste então. É preciso também ser vigilante quanto à violação de direitos em locais em que a discriminação usualmente ocorre, como por exemplo no âmbito do sistema prisional no Brasil, delegacias e presídios, e nas comunidades carentes.

Precisamos de 01 (um) dia de consciência negra para lembrar que nos outros 364 (trezentos e sessenta e quatro) dias é preciso ter consciência humana, que somos todos seres humanos, iguais em direitos e oportunidades.

(*) Joanara Hanny Messias Gomes é Defensora Pública, atualmente titular da 1ª Defensoria Pública Cível da comarca de Sidrolândia e integrante da comissão da Igualdade Étnico-Racial da ANADEP. PósGraduada em Direito do Estado e das Relações Sociais pela Universidade Católica Dom Bosco.

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