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Um lado pouco conhecido de Fidel Castro

Leonardo Boff* | 15/12/2016 08:05

"Há um outro elemento ser considerado. Cada ser humano possui sua porção de luz e sua porção de sombra. É um dado objetivo da nossa realidade humana que deve sempre ser tomada em conta. Também vale quando ajuizamos a figura complexa de Fidel Castro", escreve Leonardo Boff, filósofo, teólogo e escritor.

Eis o artigo.

Cada coisa ou pessoa têm muitos lados. Como disse certa vez, cada ponto de vista é a vista de um ponto. Cada um ocupa um ponto neste planeta e na sociedade na qual está inserido. A partir deste ponto vê a realidade que este ponto permite ver. Assim que não podemos absolutizar nenhum ponto de vista como se fosse o único. É o que dá origem aos fundamentalismos e às discriminações.

Tal pensamento vale aos muitos pontos de vista que se estão fazendo da saga de Fidel Castro. Nenhum ponto pode cobrir todas vistas.

Há um outro elemento ser considerado. Cada ser humano possui sua porção de luz e sua porção de sombra. Ou dito no dialeto da nova antropologia: cada ser humano é sapiens e simultaneamente demens. Vale dizer, cada ser humano é portador de inteligência e de um sentido de vida. É seu momento sapiens. E simultaneamente mostra desvios e contradições. É seu momento demens. Ambos sempre ocorrem juntos. Isso não é um defeito de nossa construção. É um dado objetivo da nossa realidade humana que deve sempre ser tomada em conta. Também vale quando ajuizamos a figura complexa de Fidel Castro: suas luzes e suas sombras.

Quero me referir alguns pontos a partir dos quais se me permitiu uma vista singular de Fidel Castro. O primeiro deles é a negação da TINA (There is No Alternative). O sistema imperante de viés capitalista diz:”não há alternativa a ele”. Ele representa a culminância das sociedades humanas. Fidel Castro mostrou que com o socialismo pode haver uma alternativa diferente daquela capitalista, hoje em radical crise de auto reprodução. A fúria dos USA contra Cuba e Fidel de destruir o socialismo cubano era para mostrar que não pode haver uma outra alternativa. Bem ou mal, com defeitos que conhecemos, o socialismo se apresenta como uma outra forma possível de organizar a sociedade.

Um segundo ponto a ressaltar, foi seu interesse pela Teologia da Libertação. Chegou a confessar que se no seu tempo houvesse a Teologia da Libertação (só começou partir de 1970) teria assumido esta leitura para montar a sociedade cubana.

Sob pressão da Guerra Fria, foi obrigado a ficar do lado da URSS e daí ter que assumir o marxismo. Leu e anotou nossas principais obras, de Gustavo Gutiérrez, de Frei Betto, de meu irmão Frei Clodovis e das minhas. Os livros estavam todos anotados com várias cores. E ao lado uma lista com questões ou expressões sobre as quais pedia esclarecimentos.

Outro ponto relevante foi o convite que me fez, durante o tempo do “silêncio obsequioso” que me foi imposto em 1984 pelo ex-Santo Ofício. Foi o de passar 15 de férias com ele na ilha para aprofundar as questões da religião, da América Latina e do mundo. Era amigo do Núncio Apostólico. Logo que cheguei, na minha frente, lhe disse ao telefone: ”Boff está aqui comigo.

Eu mesmo vou zelar para que observe o “silêncio obsequioso”. Só vai falar comigo”. Efetivamente visitamos toda a ilha com conversações que iam noite a dentro. Anotei quase tudo em três grossos cadernos, pois queria transformar o material num livro. Uns dias após a minha volta de Cuba, deixei os três cadernos no bagageiro do carro, enquanto ia trocar umas palavras com o Card. Dom Aloisio Lorscheider, hospedado na casa de um amigo em Copacabana, coisa de uns 15 minutos. Ao regressar, o bageiro fora arrombado, não levaram nada, apenas os três cadernos. Minha suspeita é que órgãos de segurança daqui ou de fora sequestraram o material.

O outro dado mostra a dimensão de ternura de Fidel Castro, coisa que muitos testemunham. Tenho uma sobrinha com um tipo de reumatismo que nenhum medico conseguia tratar. Falei com o Fidel se era possível tentá-la em Cuba. Pediu-me todos laudos médicos daqui. Ele mesmo se encarregou de falar com médicos cubanos.

Efetivamente não havia cura. Cada vez que me encontrava, a primeira coisa que pedia era: “como vai a Lola, sua sobrinha?” Essa memoria carinhosa e terna não é frequente em chefes de Estado. Geralmente onde predomina o poder não vigora o amor nem floresce a ternura. Com Fidel era diferente. Alegrou-se enormemente quando lhe contei que um medico brasileiro inventou uma vacina cujo efeito colateral era curar este tipo de reumatismo.

São pequenos gestos que mostram que o poder não precisa fatalmente obscurecer essa dimensão tão profunda que é o enternecimento e a preocupação pelo destino do outro.

O legado de sua pessoa carismática permanecerá como referência para aqueles que se recusam a reproduzir a cultura do capital e com as injustiças que a acompanham, de ordem social e ecológica.

*Leonardo Boff é um teólogo, escritor e professor universitário brasileiro, expoente da Teologia da Libertação.

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