Uma questão canina
Descendentes ancestrais dos livres e impacientes lobos, os cães da era moderna, americanizados como Pets, foram domesticados para se tornar a imagem psicológica do seu dono. Uma outra espécie de ostentação. Apesar da palavra da moda ser “tutor”, acho que é mais uma questão de semântica. Com a convivência, os bichinhos, estimados ou não, gostam da sensação de pertencimento, tal qual os humanos, seus amores, donos e até seus carrascos. Estes longevos amigos da humanidade ainda podem ser úteis, mimados, invisíveis, guardas protetores, guias de deficientes visuais, bibelôs de sofá, ama seca de crianças, enfim, tantas formas quanto o caráter humano achar uma utilidade para eles. As raças também são tão variadas quanto as regiões do planeta. Algumas delas são tão mimosas que conseguem fazer um coração de pedra sorrir como criança. Outras são exibicionistas por natureza da sua plástica peluda. Outros ainda não gostam de conversa. São duros. Ferozes, como se detestasse todo mundo. Se bem que tem tutores com esse perfil. Logo, a gente não sabe se é coisa do dono ou da genética canina mesmo. Há os de raça grande e os minúsculos. De vários tons e dimensões de pelo. Mas sempre combina com eles próprios. Provavelmente, por isso não exista cirurgião plástico canino. São ótimas companhias. Ainda assim acho que a mulher é a melhor companhia para homem, em especial aquela bem humorada e apaixonada por tudo. E nem precisa carregar um cãozinho no colo para sugerir afeto transbordante.
Os cãezinhos domésticos abduzem boa parte do caráter do seu tutor-dono-provedor. Mostre-me o seu cão que te direi quem és. Meu novo dito popular.
Agora, sinceramente não sei dizer muita coisa de dono, tutor ou patrão de um cãozinho abandonado. Toda vez que vejo um largado pelas ruas, me projeto nele, como se eu fosse aquela pequena coisinha domesticada e sem lar, sem rumo, sem afeto, sem mais ninguém para chamar de seu humano. O Estado também costuma fazer isso com seus camaradas contribuintes, especialmente quando os cidadãos se mostram totalmente domesticados pelas regras civilizantes, porém as vezes pouco humanizantes.
Poucas raças são tão cruéis quanto os humanos que se colocam acima de tudo é de todos. Nada escapa a essa fúria de controlar animais e plantas. É uma necessidade de colocar coleiras que nunca vi. Não bastaram os Pet shops no mundo faturando bilhões, agora a nova moda ambiental é a preservação de espécies, que estranhamente o pessoal da biologia e afins colocaram um nome genérico sui generis “indivíduo” a todos os bichinhos que caem na sua graça, dando a impressão que nunca saíram do laboratório de pesquisa. Devo lembrar que eles também gostam de ter nomes, mesmo não entendendo o idioma humanes. São como os humanos, gostam de achar que são únicos.
Por outro lado, nunca vi um bichinho de estimação canino abandonar seu dono, por mais que possa ser ignorado. São solidários, amorosos e fiéis. Aprenderam na escola da vida domesticadora que a fidelidade também pode ser bom negócio de sobrevivência. Tem uma qualidade que queria realçar: a tolerância desses bichinhos a um humano instável. Acho que a estabilidade humorada dos caninos ajudam seus tutores a desenvolver um desconfiometrô a respeito da sua instabilidade, mesmo quando leva um chega pra lá. Talvez, se um cadinho só da humanidade tivesse esse tipo de temperamento, as coisas poderiam estar menos ríspidas. Talvez com o tempo esse cadinho contaminasse mais que esse vírus separatista.
(*) Gilberto Verardo Moulard é psicólogo humanista e psicoterapeuta.