Cantigas à toa para um passarinho
Não sou especialista na obra de Manoel de Barros, tampouco sou uma leitora crítica. Tenho sido, desde sempre, uma leitora vítima, cúmplice e fascinada pela lírica capaz de abarcar os desperdícios, os “inutensílios” os “nadifúndios” e transformá-los num desbanalizado pássaro em voo livre tirado da manga metafórica de seus truques literários. E como não me parece prudente tentar desmontar criticamente os mecanismos da magia, contento-me em observar, com cúmplice fascínio, de que encantamento se trata cada quadro, porque há sempre o perigo do pássaro liberto transformar-se novamente em nada se a magia for quebrada pela explicação da magia. Daí que meu papel é não menos do que tirar da manga os impertinentes pássaros encantados de Manoel de Barros. Pássaros que mastigam palavras que não há no idioma e são capazes de, durante um voo, botar um ponto final em uma frase. A poesia de Barros é isso, é quase isso. É quando o dia dorme, por exemplo, ao lado de um pardal.
Mas não tente entender esses pássaros. É bobagem. Para entender os pássaros, Barros canta. Conhece todos os assobios. Fez um compêndio para partilhar sua ignorância com andorinhas, anhumas, garças, sabiás, beija-flores-de-rodas-vermelhas e até um pássaro esquisito chamado João-Ninguém que faz poleiro na cabeça de Bernardo. Fez um Concerto a céu aberto para solos de aves, fez Cantigas para um passarinho à toa e segue fazendo uso dos pássaros quando quer encontrar o azul. Voar é um dos movimentos prediletos de sua poesia. Vejo os pássaros passeando de poema em poema. Não se pode apreendê-los, tampouco classificá-los num dicionário de língua. É inútil apontar um significado. É muito mais gratificante soletrá-lo. Invocá-lo, boca a boca, ouvido a ouvido, sem interferências, arbitrário, percebendo sua vibração sonora ou seu grafismo. Pássaro não é um sentido, é uma imagem sonora. São pios enramados de sonhos. É o soar de um sino para se ajoelhar. Vocábulo que põe à solta, sobre a letra do mundo, uma energia virgem e religiosa, uma música primeva, que é como sua alma ondulante e superior.
O voo do seu discurso tem linhas, imagens, iluminuras. O voo de seu discurso tem uma caligrafia minúscula que parece um bando de andorinhas voando no papel. Todas as letras são sinônimas e voam tortas pelas ruas do vento. Depois dormem enluaradas como as coisas que não têm bocas. Comunicando-se apenas por infusão, por aderências, por incrustações... Está pronta a malha de Barros, onde entretece, entristece e tece o rosto de seus pensamentos. Com fios de primavera, tece no céu azul, o azul dos pássaros. Atravessa o tempo em um arco-íris, recolhe a escureza e faz do espaço um texto oculto. Um texto que tem o aroma e a fluidez da cor, o pólen que se espalha pelas planícies férteis das terras pantaneiras e reaparece relvando entre as pedras, na madrugada de todos os matagais.
Barros planta palavras que deixam na mão uma textura quase verde, um quase poema a suicidar a vida na longitude de sua lógica. São necessárias novas fecundações concebidas no prazer selvagem das libertações e libações humanas, muito além de todos os cânones literários, de todos os cânones limítrofes. Sempre o ovo escondido à espera de rebentar uma despalavra no mapa dos dicionários só para vê-la viajar em seus corpos fugidios pelos longos percursos da leitura.
Manoel de Barros é um texto que o Pantanal inventou. Deu-se ao acaso. Tem óculos, sorriso honesto, cabelos fartos e uma alma que sofre de Deus. A pele é o que há de mais bonito em seu corpo. Vai imitando o céu como pode. Uma pele ensimesmada que veste o espírito desnudo. O Pantanal tem uma escrita genial, e Barros é sua ficção. E quando o Pantanal começa a escrever é um escorrer de água em primeira pessoa que vai abrindo os veios tintos da terra. Rebenta e suporta, inunda e aprofunda. Esparge-se ao longe do papel- planície frases silenciosas e impossíveis. Crescem jacintos sobre as palavras e correm águas agradecidas sobre latas... Os versos rastejam como lesmas em busca de suas casas de caracóis, e com corpos já cansados descansam sobre o poema esperando Deus inaugurar suas eternidades.
Ao espelho, Manoel é peixe. Semântico. Rasga o tempo ao longo do rio e do vendaval. Inunda vilas. Alaga terrenos e mastiga o sono por dentro da pele. Depois da catarse, recomeça do nada, como quem ficou sem coisas nomeáveis pra dizer. Não se podem prever seus repentinos argumentos, os testamentos que suportam a criatividade de suas memórias inventadas. Sobre restos e rastros de uma longa história conta como seria o mundo imaginário, se ele fosse imaginário. Manoel renasce cada dia, ávido e com ganas de soletrar o sonho dentro de sua geografia meticulosa. Enquanto a manhã desliza pela garganta do dia, há um novo corpo por se construir. Célula a célula, letra a letra. A cumplicidade clandestina com a palavra a cumprir o itinerante da poesia. A inexplicável arte de emoldurar o nada.
Manoel é o pássaro inquieto rabiscando as sílabas do pantanal. É o soletrar de uma travessia sem fim. Acumula palavras pra se distrair e se realiza no rascunho da invenção, nos discursos de uma língua inventada pelo movimento das águas. Todas as manhãs, ao despertar, entrega seu canto ao infinito, e a poesia, no corpo de uma gaivota, voa fora da asa.
Por Lucilene Machado