Enfim setembro, a imensa lua e um gato intrujão
Existe aqui em casa um gato intrujão. O bicho aparece de vez em quando e, não se sabe o porquê, inventa de se encaixar entre minhas pernas enquanto estou sentado em frente ao computador, tomado pela febre de escrever.
O gato não sabe que não gosto dele, muito menos desconfia do famoso mau humor de todo escritor, especialmente quando está escrevendo.
Por conta desse gato, que sequer tem nome, abri a janela do quarto para pô-lo para fora e dei de cara com uma lua enorme surgindo no horizonte do dia que termina.
Então me veio o estalo, falei sem perceber: já estamos em setembro!
E um sentimento gostoso tomou conta de mim num longo suspirar.
Converso com a lua, nossa, como você está grande! É felicidade porque agosto foi embora? Setembro é seu mês preferido? A lua não me responde....
Eu não tenho nada contra agosto, mas sempre fico feliz quando acaba.
É que os cachorros loucos já não existem, mas a poeira insiste, assim como o agouro.
E sei lá, sou romântico, é em setembro que a primavera se anuncia e já vejo as flores desabrochando, cercadas de abelhas e borboletas. Será que isso ainda existe ou são só imagens do passado em minha lembrança?
Já percebeu que não chove em agosto? É depois da chuva que a natureza se revela.
Certa vez, num jardim esquecido, encontrei uma borboleta pousada nos cascos de um caramujo. Achei a cena incrível, lírica, como se o velho Rubem tivesse pousado nas costas de Manoel...
Ah se eu tivesse de celular para registrar numa foto. Mas eram tempos outros, isso não existia e eu nunca soube desenhar. Uma pena.
Nada tenho contra agosto (eu acho), mas sempre fico feliz quando acaba.
É que os cachorros loucos já não existem, mas a poeira insiste, assim como o agouro.
Agosto é tempo demorado, são dias que parecem não ter fim.
O nome tem a ver com o poderoso imperador romano Augusto, mas para nós, mortais brasileiros, lembra mesmo é desgosto.
Deve ser por causa da rima: agosto, agouro, desgosto. Os mais velhos se lembrarão do suicídio de Getúlio, da renúncia de Jânio e de tudo de ruim que veio depois disso.
O soldado de agosto desfila no sete de setembro e recebe aplausos. Tudo está no seu lugar, graças a Deus, como diz a canção.
De repente o gato voltou, se instalou no meio das minhas pernas, ronronou, pediu carinho. Olhei para ele com cara de agosto. Que bicho é esse que desconhece o desprezo?
Tenho cá comigo diversos amigos queridos nascidos em agosto. A maioria é do signo de leão. Se eu acreditasse em signos, diria que eles são fortes, determinados e muitas vezes intolerantes. Vez ou outra até intoleráveis.
Sou de aquário e, por causa desse destino, deveria acreditar em tudo isso. Mas só creio mesmo na imagem brutal da lua imensa entrando na varanda de casa sem pedir permissão, enquanto o gato intrujão se contorce nas minhas mãos, pedindo para ficar.
Preciso de um passeio pelos campos. O concreto da cidade me engole e mal consigo sentir o cheiro do jasmim. Talvez nalgum domingo, se não tiver jogo do Botafogo.
Devo confessar que tenho acompanhado a lua e tem crescido em mim a impressão que ela está cada vez mais próxima. Se tem uma coisa nos dias atuais que é melhor do que antes é exatamente o tamanho da lua. E a claridade também. Olha a estupidez, a claridade da Lua não existe, é emprestada do Sol. Mas qual escritor não acredita nas coisas que não existem?
É setembro, bate o sentimento que somente a primavera consegue provocar: perfume, flores e bichos alados voando, alguns dançando, outros zumbindo.
A metamorfose só existe para criar asas nas borboletas Lagartas não voam, mas conseguem perceber que setembro se aproxima e as flores surgirão de repente. Então se transforma: há o casulo, nascem as asas, bem próximo, elas sabem, existe um jardim no qual a rosa se abre.
Quando criança, eu tinha o costume de seguir as formigas cabeçudas levando nas costas pedaços de folhas verdes. Aquilo me causava espanto e curiosidade, também o receio de as formigas acabarem com o verde das folhas das árvores, assassinar a floresta, algo assim.
Bem mais tarde descobri: formigas não comem folhas, mas o fungo que elas aprisionaram, sim. Em troca, o fungo fornece enzimas que alimentam as formigas, uma relação mágica que a ciência chama de simbiose.
A natureza é fantástica.
Tatuzinho de jardim era outro bicho que chamava a minha atenção. Passava horas observando o bicho cavoucando a terra.
De uns tempos para cá, cheguei à conclusão que vivemos arrodeados de buracos.
Tatuzinhos, fungos e formigas se transformam numa imagem na minha mente: Alice caiu no buraco porque foi empurrada por um fungo, ou então foi Lewis Carroll que tomou um chá de fungos, desses que alimentam os formigueiros. John Lennon entrou naquele mesmo buraco e quando saiu gritou “Lucy in the Sky with Diamonds”.
É uma pena que as formigas não saibam cantar e as cigarras tenham uma única canção. Às vezes me pego ouvindo Lucy in the Sky with Diamonds na voz de uma cigarra solitária, cigarra azul, destoando das outras sem importar, porque é uma cigarra diferente e também caiu no buraco de Alice.
O gato novamente interrompe meu raciocínio e resolvo conversar com ele. Não desgosto totalmente dos gatos, embora prefira os cachorros. Em meu romance, A bruxa da Sapolândia, dei voz a um gato. Venha cá, bichano, vamos fazer as pazes. De cara, resolvi dar-lhe um nome: Raulzito, porque ele tem uma espécie de barbicha que lembra o cantor.
A leve brisa assopra minha cabeça e resmungo: sinto muito, eu não acredito em fantasmas e prefiro acreditar em canções do vento, esse último é o final da Flauta Mágica.
O fantasma de Mozart vem me visitar às vezes. Ainda bem que eu não acredito em fantasmas.
Qual escritor que nunca se sentiu seduzido pela vontade de entrar em um buraco mágico?
O vento volta a soprar, fala “guarda a rosa que te dei”. Escuto e desconheço a voz, a rosa, o tesouro que deveria guardar.
Peço socorro a Poe e ele complica mais ainda a minha aflição. Me pede para ir até a janela, eu vou, mas a lua já está no alto, muito menor que antes, e uma nuvem em forma de pêndulo mira o meu olhar, um tanto ameaçadora, tépida por enquanto, mas sabe-se lá como ficará na madrugada e eu tenho medo de tempestade, principalmente quando estou dormindo.
As lentes dos óculos estão embaçadas. Retiro do rosto e esfrego na camisa para admiração do gato Raulzito.
Eu rio e ele prossegue me encarando, como não entendendo como meus olhos foram parar nas minhas mãos.
Faço um carinho, ele recua. Sussurro bem perto dos seus ouvidos, você enxerga tão bem, jamais precisará de óculos, eles são terríveis quando embaçam.
Ele se afasta de mim pela primeira vez, vai saindo pela janela, certamente coberto de pensamentos e razões: “esses humanos são muito estranhos”...
André Alvez