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DEZEMBRO, SEGUNDA  23    CAMPO GRANDE 26º

Beba das Crônicas

Eles estão indo embora...

Para Gal e Erasmo.

Por André Alvez (*) | 03/12/2022 14:19

Eu quero falar da saudade, dos meus heróis da música, sons e luzes que aos poucos se apagam.

Sempre acreditei que os ídolos são de plástico, não morrem, não se apagam; se eternizam, guardados numa cristaleira acima de um pedestal dourado.

Mas Gal foi embora.

Erasmo também.

A jaqueta de couro repousa num canto da sala, triste, calada. No outro canto, a flor que adornava os cabelos encaracolados de Gal também repousa. Ambos trocam olhares, voltam aos tempos do casaco de general, cheio de anéis, os odiosos generais. Foi lá que tudo começou.

No dia em que Gal morreu, caminhando num desses shoppings, dei de frente com um grupo de jovens sorrindo e brincando. Bateu uma revolta. Você aí, moça tatuada, você também, menino do nariz sardento, soltando risadas ébrias na penumbra da noite. Vocês não sabem que a Gal Costa morreu? A Gal morreu, porra! Não sabem quem foi a Gal? Ela era você, era eu, éramos todos um só. Faça um minuto de silêncio, respeite a minha dor. Passei de cara amarrada, condenando a pobre juventude que sequer percebeu o meu vulto atravessando entre eles de cara amarrada.

Ontem, assim que soube da morte do Erasmo, nem saí de casa. Fiquei quieto, amargando minha dor e medo. Dor pela perda de um grande ídolo, medo porque cada vez mais a morte escancara diante de todos nós aquele sentimento latejante, uma voz por dentro falando que é chegada a época da véspera da sua própria morte. Medo, muito medo.

O gigante Erasmo Carlos está morto. Como supor? Como aguentar a dor?

Talvez eu não devesse escrever sobre os dois ídolos mortos de repente em uma única crônica. Mas a dor se torna menor quando é arrancada de uma só vez. Então, esparramo nessas linhas todo o choro entrecortado e preso à garganta.

Eles estão indo embora, atravessando a linha paralela que ninguém enxerga e o destino é incerto.

Dirá em pensamento o leitor desatento sobre essas linhas lacrimosas: ah senhor cronista, sou um jovem. Explique melhor essa sua dor porque, para mim, morreram dois velhinhos que cantavam.

Vamos lá, foque a luz na cabeça do garoto tímido que eu era e sentiu os pés baterem no chão sem querer, num ritmo cada vez mais acelerado, embalado pelo canto e pela guitarra saídos de um rádio de pilha. Foi exatamente assim quando ouvi Erasmo cantar, naquele jeito de sempre, o cara grande e amigo, a canção (confissão), na qual ele dizia que, apesar de muito novo (antigamente), não era mais uma criança, era um homem e entendia tudo. No final da música, Erasmo admitia que era um homem crescido (depois) mas, tal e qual uma criança, não entendia absolutamente nada dos problemas da vida.

Metáforas... O tempo passou e eis-me aqui, um homem crescido, buscando na criança que fui alguma forma de entender o fim da vida.

Sequer desconfiava que a vida passava na janela e aquela canção seria para sempre tão minha, como se estivesse diante do vento escuro do destino, passando lá fora, e que aquele assombroso assovio já não fosse uma metáfora, mas uma dolorida realidade; o pensamento andando sem rumo numa estrada que vai dar em nada.

Gal morreu. Como assim?

Os cabelos volumosos, a cintura fina, a dança sensual, a voz, ah céus, aquela voz... Se Deus existe, escolheu a voz mais deliciosa que tinha para fazer Gal cantar. E assoprou nos ouvidos de Caetano os versos eternos: “Eu vou fazer uma canção pra ela, uma canção singela...” E Caetano ouviu com gosto, imaginou as portas das estrelas se abrindo, um local calmo no qual até mesmo as aves se aquietassem ao ouvir Gal cantar. E o resto se deu, o todo se completou, e o que antes existia já era diferente, porque a voz da menina baiana fazia a dor sumir, a maldade desaparecer, calava a inquietude.

“Meu nome é Gal”, ela disse numa canção que Erasmo escreveu.

E quando Caetano e Caymmi se fundem, não atino para mais nada, porque “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.

Gal e Erasmo são eternos. Ainda assim, eu choro.

A nova geração não se assemelha em nada ao estrondoso símbolo que esses dois representam. De novo, invoco o jovem leitor: desculpe, eu sei que pode parecer puro saudosismo = coisa de gente velha - mas a verdade é que Belchior não estava completamente certo quando afirmou que o novo sempre vem. Pode até vir, mas não é igual ao passado, não consegue ser; a missão é impossível, o antes foi algo mágico demais para ser superado. Jamais haverá uma voz como a de Gal Costa; jamais teremos novamente um artista tão talentoso e com aquele jeitão de amigo de todos como Erasmo, eles são fodas demais, vocês não entendem. Não se afaste jovem leitor, vá até o Youtube, mate essa sua curiosidade, ouça “Vaca profana”, “Negro amor”, ou “Vapor barato”. Pode ser também “Filho único”, “Mulher”, ou “Minha fama de mau”, Escute as canções da geração que os dois artistas mortos ajudaram a compor, tente se encontrar nesse indefinido espelho, sinta-se preso à leveza do descascar suave da pele de um fruto maduro, e ao mesmo tempo escute as nuvens explodindo no quintal. Perceba os tantos lugares e caminhos onde as músicas desses dois monstros sagrados conseguem facilmente te conduzir...

Depois silencie num gesto de respeito. Eles se foram, mas continuam aqui, guardados na memória, o nome marcado na História.

A Tropicália e a Jovem Guarda não seriam nada sem eles.

Não se pode falar em Gal sem falar de Caetano, Gil e Bethânia. Não se pode falar em Erasmo, sem lembrar de Roberto Carlos. Eles ainda estão por aqui, mas um dia também caminharão pela velha estrada que vai dar em nada, ou pelo menos em algum lugar que não se sabe, que não se tem ideia.

“Ah, agora eles estão no céu”.

Detesto quando dizem isso. O céu, para mim, é um lugar silencioso, calmo. Como poderiam caber Erasmo e Gal num lugar assim?

Prefiro imaginar que estão em um palco iluminado, sons de guitarras, baterias e palmas de uma plateia enlouquecida.

E, se posso criar uma imagem final, se tenho esse direito, vejo um lugar bonito, no azul infinito, onde o vento desembaraça suavemente os galhos entre as folhas das árvores verdes e ainda descortina as nuvens brancas de algodão. É lá que Erasmo assopra os cabelos de Gal, e juntos cantam uma canção do Caetano, aquela que eu mais gosto, que diz assim...” Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação, minha bússola e minha desorientação. Se o amor escraviza, mas é a única libertação, minha voz é precisa, vida que não é menos minha que da canção”.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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