O enigma doloroso de Antônio Berni
É uma linda moça grávida, de vestido vermelho e a meia amarela erguida até os joelhos. Carrega o rosto reflexivo, mas decidido, a mão empurrando pelo ombro o menino cujo olhar é igual ao seu.
Diante deles há uma porta, o enigma doloroso, parece lhe perguntar: É o mar que se perde na areia ou é a areia que se afoga no mar?
O menino encara o desenho na porta aberta. Não se dá conta que a figura presa à porta é ele mesmo daqui a alguns anos, tempos depois que a mãe lhe jogar naquele mundo estranho e inquietante no qual terá que sobreviver sem poder contar com a força daquela mão que agora o apoia.
Talvez o toque de mão nos ombros do filho não seja um empurrão, mas a tentativa de o segurar perto dela. “Não vá, fique aqui”, chego a escutar...
Mas na barriga cresce outra vida e ela sabe que não dará conta de criar sozinha dois filhos. Mãe solo. É preciso ofertar um para a sede do mundo e aguardar a chegada do outro.
Será menina?
A moça me parece bastante jovem. A verdade é o instante e nesse instante é isso, uma jovem mãe, tão linda quanto impalpável.
Talvez não seria tão linda se não estivesse grávida.
Enquanto fixo os olhos na sua imagem sinto algo indecifrável, como o sussurro do vento gelado ou o ruflar de aves imponderáveis.
Fujo os olhos, me dou como os reflexos das paredes escuras e o teto ameaçando desabar.
No mundo lá fora se ergue o castelo pintado de escuridão, levemente ofuscado por um traçado nas cores verde e amarelo, feito para abrandar a sombra medonha, como se fosse uma armadilha em forma de convite: “venha, não tenha medo.”
Por um momento efêmero, imagino que talvez lá fora não seja tão ruim assim. Mas logo as paredes cinzas e o teto ameaçador, em conluio com uma fresta de luz atravessando a porta, oprimem a mãe, o filho e o bebê que ainda não nasceu.
É uma armadilha, fujam! Grito, em pensamento.
Eles não me escutam. O menino é quem mais me ignora.
Você conhece a sede da vida, menino? E a fome do mundo? Claro que não, você é apenas uma criança.
Olho novamente fixo para o rosto da moça e ela permanece me ignorando, de perfil, os olhos atentos à porta aberta.
O menino sabe que não posso brincar com ele, sou estranho, tenho um jeito de olhar provocando receios, como alguém imaginando histórias. Sim, ele está certo, eu realmente sou assim, mas ignora, no entanto, que eu já atravessei aquela escuridão lá de fora e sobrevivi. Poderia apanhá-lo pelas mãos e mostrar alguns caminhos: eu sei que o sagrado está no horizonte, nas árvores, nos rios, nas montanhas, bem distante do prédio cinza que o encara lá fora.
O menino me ignora porque prefere levar com ele apenas um pedaço de pano e o calor das mãos da mãe.
O pano seria para apagar o passado ou lustrar o futuro?
Não sei, somente o menino sabe. Porém, ele não sabe que eu conheço as esquinas perigosas, sei distinguir na escuridão o lume do punhal, pressinto a fera se ajeitando na sombra e sempre dou um jeito de estancar o sangue.
O abismo não tem paredes, por isso se esconde atrás do castelo.
E o cuitelinho? Você sabe o que é um cuitelinho, menininho? Já viu que quando ele voa apressado é porque o néctar da flor já acabou e ele precisa se esconder dos perigos da vida?
Continua a me ignorar? Eu penso demais? Não consigo me calar, desculpe.
Se não quer mesmo a minha ajuda, aprenda a lidar com a tempestade, faça sozinho os barquinhos de papéis para jogar na enxurrada quando a tempestade passar e mire o horizonte, até que desapareçam num bueiro ou na boca de um rio.
E o seu pai, menino, fique sabendo que ele não é um rei, é um bêbado jogado nos escombros das ruelas abaixo do castelo, onde predomina o som dos lamentos ofuscados pelo barulho da chuva, um corpo magro e ossudo, semimorto diante dos muitos raios e lumes dos trovões distantes, daqueles sem som e muita luz, longe dele, bem longe, estirado na terrível escuridão, entre os brilhos de faca e os tiros de canhão.
Nenhum anjo se aproxima, apenas o cálido assoalho de um brilho fosco sugere a inocência (ainda) do menino.
E quando sair pela porta e mergulhar no mundo lá de fora, a moça grávida finalmente terá tempo para dormir sossegada, tempo pequeno, bem curto, logo a vida dentro dela despertará e será preciso voltar a caminhar pela estrada sem fim.
Sinto o assombroso deslumbre ao fixar meus olhos naquela barriga imóvel: é uma beleza de fêmea, uma gravura divina sob a aura de mãe.
A barriga da grávida sugere a mexida dos pezinhos dentro dela. É o eixo de tantos assombros, ainda invisível, embora pulse pois guarda outra vida, o novelo ainda intacto, a ponta da linha começando a desprender.
Tento imaginar o futuro da criança, o gatinhar, os primeiros passos. Um nome? Esperança. Sim, esse é um nome bom para quem está nascendo, porque o mundo precisa de esperança.
Se Esperança for menino, o nome correto é Elpídio, que significa esperança em latim.
Mas diabo, quem hoje em dia coloca um nome tão feio no filho?
Mas precisamos tanto...
A figura do menino já rapaz na porta aberta parece me encarar, faz um pedido para que eu me cale, não tente desvendar o futuro, nem mesmo imaginar a escuridão da cidade abaixo dele.
Mas eu preciso pensar para depois escrever, é a incontrolável fervura do sangue que escorre nas minhas veias.
Ignoro o rapaz preso à porta. No outro instante, já consigo enxergar o menino vagando abaixo dos jardins suspensos, tateando a escuridão em busca de luz, enquanto a mãe, pouco tempo depois, se ajoelha, deita numa cama fria, se abre permitindo a vida que guarda por meses, o esforço supremo e solitário, armando um jeito de Esperança (ou Elpídio) nascer, o olhar indefeso, a boca faminta, os olhos que choram.
Um sino ao longe me desperta, caminho sem pressa levando comigo os detalhes daquela pintura, um quadro de Antonio Berni, “O enigma doloroso”, tão belo, reflexivo, a vida posta em três tempos diferentes: rostos e cores lançadas de forma soberba diante de uma porta aberta mostrando um mundo enigmático e ameaçador.
O salto áspero do meu sapato faz ranger o assoalho e a madeira treme. Vou-me embora, mas aquela imagem irá comigo por um bom tempo, até o dia que se apagará no necessário esquecimento, quando súbito se erguer na minha mente um muro frio de reboque desalinhado, apagando tudo, no escuro do meu quarto, na minha terra distante.
Por isso escrever é tão necessário. As lembranças morrem, as letras vivem para sempre.
Museu Nacional de Belas Artes
Buenos Aires, 05 de maio de 2024.
André Alvez