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Cidades

Em três dias, filhas enterraram pai e mãe levados pela covid-19

Aldo morreu dia 20 de setembro e Ângela dia 23. Três dias separaram o casal que dividiu a vida e também a ala do CTI da covid

Paula Maciulevicius Brasil | 22/12/2020 16:24
Em três dias, filhas enterraram pai e mãe levados pela covid-19
Café da tarde foi o que ficou de mãe para filhas depois que dona Ângela partiu. (Foto: Silas Lima)

A hora do café para as irmãs Gisele e Solange permanece sendo por volta das 4h da tarde, onde uma mesinha com xícaras e chipa espera quem for se achegar. O costume era da mãe, que partiu vítima de covid-19, em setembro deste ano. E é no cenário bucólico e saudoso que elas escolhem falar sobre quem foram seu Aldo César e dona Ângela Cubel Brull.

"A mãe era muito faceira, era vaidosa demais da conta. Adorava passear de carro", recorda uma das filhas, Solange Mello, de 64 anos. Com artrite e osteoporose a senhorinha que aparecia rindo nas fotos tinha dificuldade de locomoção, usava bengala, mas nem por isso deixava de ter todo o cuidado do mundo para o seu Aldo não cair.

Aldo César, por sua vez, vagava entre as lembranças sentado na cadeira na varanda de casa. Atingido pelo Alzheimer, ora não lembrava das pessoas, mas nunca esqueceu o lema que adotou toda a vida. "A gente chegava e dizia: 'oi, pai, tudo bem?' E ele respondia: 'se não tá bom, faz de conta'", lembra a psicóloga Gisele Cubel César de Carvalho, de 57 anos.

Em três dias, filhas enterraram pai e mãe levados pela covid-19
No celular de Solange, a foto dos pais juntos uma semana antes da internação. (Foto: Silas Lima)

Seu Aldo e dona Ângela estavam juntos havia quase 60 anos e internaram com um dia de diferença no hospital. Ele foi levado no dia 18 de agosto, por conta de uma febre alta, e ela na manhã seguinte, 19, depois de exames mostrarem o quanto o coração estava fraco.

A família acredita que a covid-19 veio depois, já que os primeiros testes feitos logo na entrada do hospital não apontaram o positivo. Seu Aldo estava com pneumonia e dona Ângela precisaria colocar marca-passo.

O café, que é gentilmente oferecido à equipe, vem na mesma xícara que dona Ângela colocava à mesa de casa. "Nessa hora do café era o horário que a gente se reunia mesmo, todo dia. Claro que depois da pandemia a gente reduziu bastante, mas como eles eram idosos, alguém tinha que ir lá", pontua Gisele. E era quase sempre ela a visitá-los. "Eu ia praticamente todo o dia, ficava longe, usava máscara e tudo mais, a gente não sabe o que aconteceu", descreve. 

No dia em que o pai foi levado, uma ambulância da Unimed o buscou em casa. "E nós não vimos mais meu pai, quando foi à tarde, o boletim falou que ele estava com pandemia e podia ser covid. Nós nos desesperamos", recorda a filha psicóloga.

Com a mãe internada, o hospital juntou os dois no mesmo quarto, mas em menos de uma semana eles passaram a dividir uma das alas do CTI da covid. "Eles ficaram juntos, aí levaram ele primeiro para o CTI e em seguida ela foi", contam as irmãs.

Em três dias, filhas enterraram pai e mãe levados pela covid-19
Ângela e Aldo foram internados com 24h de diferença e transferidos para CTI da covid juntos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Na memória ficaram as fotos de uma semana antes das internações, do aniversário do casal. Ele fez 85 dia 3 de agosto e ela 84 no dia 12. "Até eles irem para o CTI a gente falava o quanto podia pelo celular, ela ia chegar a ter alta do CTI duas vezes", recorda Gisele.

A primeira alta foi levantada pela equipe médica, segundo a família, mas com a condição de home care. Por ser feriado de 7 de Setembro, a liberação não foi possível e no meio tempo dona Ângela voltou a ter febre.

Os dois tiveram de ser intubados. Seu Aldo não voltou da sedação, já dona Ângela sim e num intervalo de três dias, viu o companheiro dos últimos 60 anos falecer. "Eles estavam no mesmo CTI, separaram por um biombo, e ela deve ter percebido que o pai não voltou, tiraram o sedativo e ele não voltou. Três dias depois ela faleceu e a gente acredita que ela percebeu o movimento todo e talvez tenha entrado em desespero", narram Solange e Gisele.

Uma enfermeira com quem elas tiveram contato informou que no dia da morte, dona Ângela estava muito chorosa. "Ela estava consciente quando morreu", diz Solange.

Em três dias, filhas enterraram pai e mãe levados pela covid-19
Casal foi enterrado com três dias de diferença, deixando na família o vazio de uma saudade sem despedida. (Foto: Arquivo Pessoal)

As filhas se veem perdidas até hoje. O pai morreu dia 20 de setembro e foi enterrado em 21 e a mãe morreu dia 23 e foi sepultada em 24 de setembro. "A gente ficou perdida, sabe. Tudo, as coisinhas deles, tivemos que desmontar a casa. Os primeiros dias foram horríveis, você não acredita, porque a gente achava que eles iam sair, que ela ia conseguir", desabafa Solange.

O que ficou foi o exemplo de pais amorosos com os filhos e também entre si. "Ele tinha um carinho com ele e ela também, apesar das limitações, tinha o maior cuidado para ele não cair, se preocupava de fazer o lanchinho dele", detalha Gisele.

Se não tivessem ido juntos, a família acredita que a dor da saudade tomaria por completo quem tivesse ficado. "Ele eu acho que não aguentaria, já estava meio debilitado, ia sentir muito a falta dela. Mas ela tinha mais força, só ia chorar todo dia, toda a hora. Mas Deus sabe o que faz", confortam as irmãs.

O enterro foi a maior tristeza. Sem despedidas, elas ficaram de longe vendo o caixão descer. "Enterrar já é triste por qualquer coisa, que seja acidente ou outra doença, mas a covid é pior ainda, porque não te deixam ver, não te deixam velar, fazer uma oração, nada", lamenta Gisele.

A maior saudade, para as irmãs, é a presença dos pais. "Minha mãe era uma pessoa muito sofrida fisicamente, mas ela nunca deixava de sorrir e sempre fazia o cafezinho, a chipinha, a torradinha. Todo dia ela fazia e esperava a gente lá", contam as irmãs.

Hoje, toda sexta-feira virou a tarde do café, com horário marcado para as filhas sentirem a saudade. "A gente vem, fala de tudo um pouco, toma um café, fica lendo, mata a saudade e chora", finalizam.

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