"Ninguém morre no Damha, morre na Nhá Nhá", diz juiz sobre cultura da segurança
Constatação foi compartilhada em lançamento de projeto para atender vítimas de injutiças
“Ninguém morre no Damha, morre lá na Vila Nhá Nhá”. A frase de impacto é do juiz José Henrique Kaster Franco, dita durante evento de lançamento do Instituto Vozes, iniciativa de advogados e defensores para oferecer assessoria jurídica gratuita em situações de erro judiciário ou a potenciais inocentes que se tornaram réus por homicídio.
Ao mencionar o condomínio elegante e o bairro com muitas ocorrências envolvendo dependentes químicos, o magistrado alertou que não direcionava a crítica as pessoas, mas para demonstrar uma cultura cristalizada no Brasil que coloca pretos e pobres como alvos principais dos sistemas de segurança e judicial. Ele mencionou a elevação da violência, gerando confrontos e mortes de eventuais suspeitos e policiais “em uma guerra sem precedentes” no País.
O tema central do evento foi o erro na esfera criminal, levando inocentes para a cadeia e até mesmo resultando em condenações. Para abrir o encontro, as idealizadoras, advogadas Rejane Alves de Arruda e Priscila Merloti de Oliveira, apresentaram relatos de vítimas de erros e os impactos na vida, como perda de emprego, de convívio social, de condição financeira, da saúde mental e, o mais impactante, da imagem pública.
A vida nunca volta ao normal depois de processos injustos, “que machucam a vida humana”, nas palavras de Rejane. O projeto quer selecionar casos emblemáticos de condenação para apresentar pedido de revisão criminal e oferecer assessoria a réus do Tribunal do Júri.
Os também magistrados Roberto Ferreira Filho, da 1ª Vara Criminal da Capital, e Fernando Braga, desembargador do TRF5 (Tribunal Regional Federal), da região Nordeste, falaram das vivências no dia a dia dos processos e estudos em relação aos erros na área penal.
Tanto Kaster como Ferreira Filho destacaram a necessidade dos sujeitos do sistema de Justiça entenderem a realidade social e dar importância aos relatos dos envolvidos no processo, o que poderia ajudar a reduzir situações de erros. “Na essência, no sumo, depois que espreme tudo, está a pessoa”, comentou Kaster.
Já o colega lembrou de um jovem de 18 anos que enfrentava o primeiro processo penal, acusado de furto, uma trajetória de dependência química, desestrutura familiar, ausência de suporte do Poder Público. O magistrado vislumbrou um cenário triste: aos 25 estar morto ou envolvido com facção. Os dois juízes comentaram sobre o papel do vício em entorpecentes como uma porta de entrada para o mundo do crime.
Afastar risco de erros - Kaster menciona a necessidade de avançar no uso de provas técnicas, digitais e eletrônicas, que acabam se concentrando em processos mais rumorosos. No dia a dia, comenta, acaba valendo o depoimento. Ambos os juízes também apontaram o risco das falsas memórias, que podem influenciar no reconhecimento de presos e nos relatos das testemunhas, prejudicando um julgamento justo.
Fernando Braga, que revelou se dedicar há dez anos ao estudo contínuo do erro judicial, defende a criação de um laboratório sobre o tema, ideia já em análise pelo Conselho Nacional de Justiça. Ele faz um paralelo ao que acontece diante de acidentes aéreos, em que o objetivo não é buscar o culpado, mas reconstruir os fatos e identificar erros que possam ser superados para aperfeiçoar o sistema aéreo. De igual maneira, estudar casos, entender onde houve falha, criar banco de dados e sistematizar informações pode ajudar a aperfeiçoar o sistema de justiça criminal.
Conforme ele, na Noruega, foi criado um órgão independente, com investigação própria, laboratório e até poderes como os policiais para analisar casos. Nos Estados Unidos, há um banco de condenações errôneas, mencionou. O que não pode ocorrer, conforme o desembargador, é considerar que está tudo bem porque há um vazio de dados.
Kaster foi além da defesa do avanço em técnicas investigativas, apontando que a defesa também deve fazer investigações. Menciona que essa ação defensiva foi prevista em portaria da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), mas não consta em lei. Com a tradição investigativa do Brasil, de o trabalho policial ser destinado a fornecer elementos ao Ministério Público para a acusação, esse papel da defesa poderia permitir a “paridade de armas” no processo. “Nada melhor do que democratizar a produção de provas”.
O juiz mencionou dado apurado pelo IPEA de que 37,5% dos presos acabam sendo absolvidos ou condenados a penas que não privam a liberdade. Ele diz que é preciso aperfeiçoar o sistema probatório, medida de interesse de todos, porque o fato grave é que quando um inocente está preso, um criminoso, verdadeiro autor de um delito, não está na cadeia.
O instituto e a defesa – Os magistrados destacaram a importância da criação do instituto, para ajudar a dar visibilidade a situações de erros e ajudar a aperfeiçoar o sistema. No Brasil há uma representação do Inocence Project, mas as advogadas preferiram escolher um modelo próprio.
Rejane informou que se trata de um grupo de seis advogados e procuradores da Defensoria Pública que se reuniram para tocar a iniciativa. As pessoas que consideram se enquadrar no propósito do projeto deverão se inscrever no site ou perfil do Vozes no Instagram para passar pela filtragem dos profissionais. A assessoria será somente para pessoas envolvidas em situações de erros ou acusações injustas sem condições de pagar por um advogado.
Para contato, o site é o vozesjusticaparainocentes.org.br e o perfil é @institutovozes.