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Capital

Famílias reivindicam usucapião e questionam doação de terreno ao Asilo São João

Ações envolvem acusações de falsificação de documentos, violência patrimonial e crime contra idosa de 93 anos

Por Silvia Frias | 27/12/2024 08:48
Terreno na rua Pe. João Crippa: casas foram demolidas em 2023 (Foto: Paulo Francis)
Terreno na rua Pe. João Crippa: casas foram demolidas em 2023 (Foto: Paulo Francis)

A posse de terreno de 880 m², na região central de Campo Grande, é alvo de disputa e contestação que envolvem acusações de falsificação de documentos, violência patrimonial e crime contra a pessoa idosa. Três ações judiciais se cruzam na batalha para provar quem é o legítimo dono do terreno, avaliado em R$ 900 mil e que teria sido doado pela mulher de 93 anos ao Asilo São João Bosco e, posteriormente, vendido pela instituição.

RESUMO

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Uma disputa judicial complexa envolve um terreno de 880 m² em Campo Grande, avaliado em R$ 900 mil. A idosa Flauzina Barbosa Rodrigues, moradora de um asilo, alegadamente doou o terreno à instituição, mas quatro famílias que o ocupavam acusam falsificação de documentos e crimes contra a idosa. Três ações judiciais — reintegração de posse, anulação de procuração e usucapião — se cruzam, com acusações de violência patrimonial e litigância de má-fé, enquanto a capacidade cognitiva da idosa é questionada por meio de laudos médicos contraditórios, resultando em um embate jurídico com múltiplas reviravoltas e sem resolução definitiva.

Flauzina Barbosa Rodrigues, sem parentes ou herdeiros conhecidos, mora no asilo desde 2019 e, segundo escritura pública anexada a um dos processos, doou a área na Rua Pe. João Crippa à instituição, no dia 25 de setembro de 2023. Porém, quatro famílias que invadiram o terreno a partir de 2020, acusam a instituição de forjar documentos para representar a aposentada e, depois, legitimar o termo de doação e a venda.

Hoje, o terreno está vazio, cercado por tapumes e, todas as casas construídas ali, foram demolidas. A desocupação, segundo processo judicial, aconteceu no segundo semestre de 2023. Mas, apesar de desocupado, a briga pela área continua na Justiça.

Terreno fica na região central de Campo Grande, avaliado em R$ 900 mil (Foto: Paulo Francis)
Terreno fica na região central de Campo Grande, avaliado em R$ 900 mil (Foto: Paulo Francis)

O primeiro processo é de 15 de dezembro de 2022, em tramitação na 15ª Vara Cível. É ação de reintegração de posse com pedido de liminar, protocolado em nome de Flauzina, representada pelo então gerente administrativo do asilo, José Carlos Viana Mendes, contra os invasores do terreno, até aquele momento identificados como “Rodrigo Souza, Renilda, Kelly e Edson e outros”.

Àquela época, segundo a petição do advogado Diego Marcelino, o terreno havia sido invadido no início de setembro de 2022. O procurador da idosa informou que foi até o local pedir a desocupação de forma amigável, sem sucesso. Alegou que ela continuou pagando as contas de água e luz e que a idosa ofereceu R$ 3 mil para que as famílias desocupassem o terreno, mas não teve acordo. Requereu a reintegração, até com uso de força policial.

No dia 30 de janeiro de 2023, o juiz Marcelo Ivo de Oliveira indeferiu a reintegração, sob alegação de que não foi apresentada prova da invasão, sendo o boletim de ocorrência registrado sobre o caso “prova unilateral inapta”.

Terreno foi invadido a partir de 2020, tendo casas construídas, conforme fotos anexadas ao processo (Foto/Reprodução/Arquivo judicial)
Terreno foi invadido a partir de 2020, tendo casas construídas, conforme fotos anexadas ao processo (Foto/Reprodução/Arquivo judicial)

Mas, em março de 2023, decisão do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) atendeu ao recurso dos representantes da idosa e deferiu a reintegração, em caráter liminar. A liminar foi suspensa em abril daquele ano, atendendo ao pedido formulado pelo advogado Oswaldo Meza Baptista, que representa os ocupantes do terreno, sob alegação de que a defesa não tinha sido intimada a apresentar as contrarrazões.

Porém, no dia 21 de junho de 2023, a 1ª Câmara Cível do TJMS reformou a decisão, depois que os desembargadores foram informados que outra advogada foi intimada da decisão. A ordem de reintegração voltou a ter validade.

Cinco dias depois, Baptista entrou com tutela de urgência, pedindo prazo de 60 dias para a desocupação, já que havia crianças e adolescentes residindo nas casas, em idade escolar. A Justiça determinou prazo de 20 dias e, em 10 de julho, o juiz Flávio Saad Peron mandou que fosse expedido imediato cumprimento da reintegração de posse, sendo cumprido naquele mês.

Três imóveis foram construídos no local (Foto/Reprodução/Arquivo judicial)
Três imóveis foram construídos no local (Foto/Reprodução/Arquivo judicial)

Reviravolta – Dentro deste processo, uma nova informação foi anexada no dia 29 de setembro de 2023, mudando os argumentos para impedir a perda do terreno. O advogado Oswaldo Baptista, que representa as famílias, informou que Flauzina era representada pela Defensoria Pública em outra ação, de 12 de setembro daquele ano.

A ação refere-se ao pedido de fornecimento de fraldas à idosa que, segundo a defensoria, “é portadora de demência/incontinência urinária, atualmente cadeirante, com deficit cognitivo grave (...)”. O laudo médico atesta que Flauzina é “portadora de transtorno mental crônico, degenerativo e progressivo”. A defensoria pede que José Carlos Viana fosse nomeado curador provisório da idosa.

“Sabemos agora que restou comprovado as alegações sobre a incapacidade cognitiva da autora para outorgar procuração, através do laudo médico em anexo (...) Assim sendo, requer-se (...) a extinção do processo e a punição dos autores por litigância de má-fé, violência patrimonial, fraude de documento público e crime contra pessoa idosa”, afirmou Baptista.

É aqui que começa a segunda ação envolvendo as famílias, a idosa e o Asilo São João Bosco.

Em 10 de outubro de 2023, em nome de Rodrigo Recalde, o advogado protocola na 16ª Vara Cível a ação anulatória de procuração com pedido de liminar contra o procurador de Flauzina e tabelião de cartório de Campo Grande. Alega que a idosa não teria capacidade para nomear alguém como procurador.

Os representantes do asilo alegam a ilegitimidade de Rodrigo para contestar a procuração, por não ter qualquer vínculo de parentesco ou relação jurídica com Flauzina. Em decisão de 22 de agosto de 2024, quase um ano depois, o juiz Giuliano Máximo Martins, considerou esses argumentos e extinguiu a ação, sem resolução de mérito, por ilegitimidade do autor.

Terreno passou a ser ocupado em 2018 e, depois, em 2020 (Foto/Reprodução/Arquivo judicial)
Terreno passou a ser ocupado em 2018 e, depois, em 2020 (Foto/Reprodução/Arquivo judicial)

Acusações – Enquanto isso, na ação de reintegração de posse, o advogado Diego Marcelino contestou a apresentação do tal laudo da incapacidade de Flauzina, sendo considerada uma tentativa de tumultuar o processo. “(...) o documento juntado pelos requeridos é apócrifo, já que não é possível aferir sua legitimidade”, considerou, por haver divergência entre assinatura do atestado, com firma reconhecida, que atesta a capacidade da idosa e o outro, juntado pelas famílias, com assinatura diferente do médico.

No contra-ataque, o representante das famílias protocolou denúncia no CRM (Conselho Regional de Medicina) contra psiquiatra da equipe médica do asilo, que teria apresentado dois “atestados diferentes e controversos acerca da lucidez da autora (...)”. Os exames com resultados diferentes datam de 21 e 29 de agosto de 2023, sendo um utilizado para assinatura da procuração e, o outro, para aquisição das fraldas.

Esta sindicância do CRM, conforme anexos na ação, está em tramitação, com pedidos de envio dos prontuários dos hospitais que atenderam a idosa.

O MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) foi provocado a entrar no emaranhado embate. No dia 9 de outubro de 2024 alegou que não teria motivos para se manifestar na ação de reintegração, por não ser demanda coletiva. Mas, que extrairá cópias dos autos para que sejam encaminhados à promotoria da Justiça do Idoso, com objetivo de elucidar o tema da capacidade da idosa e a proteção dos seus direitos.

“Diante da evidente incongruência entre os atestados, não é possível concluir de forma clara qual laudo está correto - se o que atesta a capacidade plena ou o que indica incapacidade. Tal discrepância merece esclarecimento, pois coloca em dúvida o real estado de saúde da autora”.

No dia 10 de outubro, a defesa da idosa protocolou mais um documento, pedindo que os documentos sobre laudo fossem apartados dos autos para não causar tumulto processual. O último documento anexado a esse processo é a escritura pública que atesta a doação do imóvel para o Asilo São João Bosco, em 25 setembro de 2023, com matrícula atualizada em 18 de dezembro de 2024, onde consta a venda do imóvel, no dia 28 de maio de 2024, por R$ 900 mil a uma assessoria de gestão empresarial.

Posse – Mas, a história ainda não acabou. No dia 30 de outubro, foi protocolada uma ação de usucapião especial coletiva na 7ª Vara Cível, que representa Rodrigo Recaldes Lopes, Kettlen Cristina Rodrigues Bispo de Oliveira, Daniela Duarte Pedrozza e Laura Janaína Pinto de Arruda.

O documento assinado pelo advogado Oswaldo Meza relata que o terreno foi inicialmente invadido em 2018 por outras famílias e, em 2020, quando o grupo da ação chegou, encontrou casas destruídas e servindo de ponto de uso de drogas. “Os autores limparam as casas, expulsaram os usuários e passaram a cuidar com animus domini”, expressão que significa “intenção de ser dono”.

As casas que serviram de abrigo para essas famílias, segundo o advogado, cumpriram função social de propriedade, prevista na Constituição Federal. Informa que os moradores foram retirados por força de liminar e não tiveram a “posse velha” reconhecida.

Novamente, a procuração é contestada e a defesa das famílias recorre ao fato do terreno ser usado como moradia por famílias de baixa renda. Recorreu aos artigos 10 e 12 da Lei 10.257/01, que tratam da possibilidade de se classificar a situação de usucapião coletivo.

No dia 9 de dezembro de 2024, a juíza Gabriela Müller Junqueira solicitou que os autores identifiquem o imóvel, diferenciado a área ocupada por cada um deles e as limitações e que incluam os cônjuges para evitar nulidade da ação.

A reportagem tentou contato com os advogados da idosa e das famílias para atualizar o andamento da demanda judicial.

Oswaldo Meza diz que será comprovada a falsificação da procuração, anulando a doação e, consequentemente, a venda do terreno. Segundo ele, o laudo foi falsificado para atestar que Flauzina era lúcida, pois sendo interditada a negociação feita não seria legal. O advogado que representa o asilo ainda não retornou o contato.

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