No aniversário de Campo Grande, "visitar" a morte é conhecer a vida da cidade
No Imol, trabalho de médico-legista evidencia mortes evitáveis e em alta, como as de acidente de trânsito
No aniversário de Campo Grande, celebrar o novo ciclo também é oportunidade de olhar para a finitude e entender como a cidade se comporta na brevidade da existência. Se a morte faz parte da vida, o símbolo físico dessa dualidade pode ser representado pelo Imol (Instituto de Medicina e Odontologia Legal).
Para lá, no prédio verde e branco localizado na Vila Ipiranga, são levadas as vítimas de morte violenta. Acidentados de trânsito, assassinados, afogados e os registrados como “morte a esclarecer”, pendentes da resposta derradeira para o sepultamento.
“Aqui, você vê o resumo da tragédia da vida”, explica o médico-legista Carlos Eduardo Trindade Amaral, 57 anos, há 21 na função, em Campo Grande, o mais antigo em atividade na cidade. “Mas não o mais velho”, enfatiza.
As duas décadas de experiência em exames necroscópicos lhe deram embasamento para falar das principais causas de mortes violentas em Campo Grande. “Disparado, a primeira é acidente de trânsito”, começa a elencar, enquanto caminha pelos corredores do Imol. “Depois, vem PAF [projétil de arma de fogo], aí arma branca [artefato cortante ou perfurante] e, em quarto, os outros, como suicídio, envenenamento, afogamento, etc”, completa.
A lista também evidencia o perfil econômico das mortes. Enquanto acidente de trânsito
não escolhe classe social, “é parelho”, segundo o médico, as outras causas já tem grupo específico. “São os menos favorecidos, os mais humildes, aí não há democracia”.
O médico lamenta que muitos dos casos poderiam não estar na extensa lista. “Acidente de trânsito é falta de atenção, é excesso de álcool, aí tem caso do marido que bate, mata a mulher, bebe que regurgita e morre engasgado, amigos que bebem no bar e discutem, briga de facção, tragédias que poderiam ser evitada e a gente vê aqui”.
Os dados mostram a evolução preocupante. Em 2020, segundo a Agetran (Agência Municipal de Trânsito), foram 66 mortes em acidentes de trânsito. Este ano, a contagem parcial feita até 19 de agosto já chega a 55 óbitos. A tabela leva em conta os mortos no local e aqueles que vieram a óbito até 30 dias depois, já em internação hospitalar.
Se forem considerados somente os homicídios dolosos [com intenção de matar] na Capital, já são 66 mortes este ano. Em 2020, foram 123 crimes dessa natureza, conforme dados da Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública).
Reforma – A conversa sobre o trabalho foi realizada pelos corredores do Imol. O prédio fica no complexo da Coordenadoria Geral de Perícias, que engloba ainda mais três institutos, dois departamentos e a coordenadoria de apuração de procedimentos.
No Imol, além dos mortos, também são levados os vivos, vítimas de lesões, agressões e também os algozes que, quando presos, precisam passar por exames de corpo de delito. Não raro, enquanto o legista está na necropsia, examinando o corpo, o autor do crime está em outra sala, passado pela avaliação física antes de ir para delegacia ou presídio.
No corredor principal, chama atenção a 1ª sala do Imol, a “Sala Lilás”, colorida, clara e com
brinquedos destinados às crianças vítimas de estupro. No momento em que equipe do Campo Grande News esteve no local, uma menina miúda, com idade aparente de pouco mais de 3 anos era levada para exame.
Amaral explica que há 17 médicos-legistas em atividade em Campo Grande. Entre eles, neurocirurgião, ortopedista, cirurgião cardíaco, médico geral, ginecologista, infectologista, radiologista e patologista. “Todos se ajudam”, diz, citando o grupo de WhatsApp em que tiram dúvida sobre os casos, conforme especialidade de cada um.
A demanda é grande. “Fim de ano, aumentam os índices de tudo, família se reúne e dá-lhe bebida; de 24 para 25 [dezembro], isso aqui vira um inferno, tanto de lesão corporal, quanto de morte”, explica.
De julho de 2020 até julho deste ano, foram 876 casos de perícia, entre os óbitos violentos e os naturais, estes, que chegam como “morte a esclarecer”. São motivo de certa rusga com o SVO (Serviço de Verificação de Óbitos), citado pelo médico pelo envio de casos sem qualquer característica de violência. Na dúvida, pede-se a necropsia. Do total de exames, 7% são os necroscópicos.
O passeio continua. No fundo do corredor, do lado oposto da entrada principal, fica a sala de necropsia. “Tem cadáver aí?”, pergunta o médico ao APC (Agente de Polícia Científica). “Tem dois”.
Em cima das macas metálicas largas, dois sacos plásticos envolviam os corpos recém-chegados, que passariam pelo exame aquela tarde. O médico não permite imagens de perto, mesmo sem possibilidade de qualquer identificação, mas autoriza que a reportagem se aproxime. Em um dos sacos, a fronte é retangular e transparente, permitindo ver as sobrancelhas feitas à henna. No invólucro, o adesivo de “risco biológico”, o que não significa a causa do óbito, mas alguma outra patologia, como HIV.
No lado direito, fica a câmera fria, mantida a -32°C e com capacidade para guardar até 30 corpos. Em tempos de muito trabalho, já chegou a abrigar o dobro. “Antes da reforma, quando quebrava o ar, isso aqui ficava com cheiro insuportável”. A sala é mantida no ar condicionado e tem dois exaustores que permitem a circulação de ar. Naquele momento, o cheiro predominante era de produto de limpeza, mas era perceptível odor químico no ambiente.
A reforma do prédio foi realizada em novembro de 2017, investimento de R$ 385, 9 mil. As salas receberam ar condicionado, melhorias na estrutura para acabar com as goteiras. “Quando chovia forte antes, escorria água”, lembra o médico. “Tivemos melhoras importantes, não é perfeito, mas trabalha em harmonia, tem clima bom, apesar de toda a desgraça do mundo”.
O médico mostra aparelho de Raio-x, que chegou pouco antes da reforma e parecer ser o “xodó". Antes dele, Amaral já teve que passar mais de 8h de trabalho para encontrar 15 projéteis no corpo de homem assassinado a tiros. “15 tiros e nenhum tinha saído, tinha que encontrar todos”. O êxito na necropsia pode evitar eventual dúvida e possível exumação. “O que é traumático para todo mundo”, diz. Nesta sala, aliás, dois armários estão com sacos de ossos e outros materiais a serem periciados. O médico mostra duas cordas de casos de provável suicídio.
A perícia pode ser decisiva na elucidação de crime. O médico diz não poder citar casos, mas alguns são notórios e foram amplamente divulgados, como de adolescente de 17 anos, grávida, que disse ter tomado ervas e, sozinha, praticou aborto, abriu buraco no quintal de casa e enterrou o feto.
O caso é de 2017 e, em antigas reportagens, há imagens do Amaral na casa da menina para fazer o “levantamento de evidências” pedido à época pela delegada, coisa que não é comum no trabalho do legista. Em coletiva, a avaliação é que o relato da menina “não era impossível, mas pouco provável”. A investigação comprovou que a garota foi levada a abortar pela madrasta, com apoio de outras duas pessoas, pois a família não aceitava o namorado com rapaz pobre.
Questionado se lidar com mortes e casos de violência o afeta, o médico respondeu. “Eu?
Eu, não levo nada para casa, meu negócio é resolver. Fico contente em resolver algo, sinto alívio, que ajudei a sociedade em alguma coisa, de alguma forma; Tem pessoas que não tem essa capacidade, teve gente que foi embora daqui, porque não aguentou”.
A ideia de finitude pode ser outra para quem convive de perto com a morte. “Pior que isso aqui, quer saber o que é? Pronto-Socorro, trabalhei três anos no PS à noite. Se mundo tiver fim, é no pronto-socorro”.