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Marinha afasta transexual autorizada pela Justiça a usar roupa e nome femininos

União recorreu e levou ao TRF argumentos como “piloto cego” e “segurança tetraplégico”

Aline dos Santos | 23/08/2021 09:19
Alice Costa foi afastada, após decisão judicial que reconheceu seus direitos de mulher transexual na Marinha. (Foto: Arquivo Pessoal)
Alice Costa foi afastada, após decisão judicial que reconheceu seus direitos de mulher transexual na Marinha. (Foto: Arquivo Pessoal)

Amparada por decisão judicial para usar o nome social, uniforme e cabelos femininos na Marinha, a terceiro-sargento transexual Alice Costa, de 31 anos, recorreu novamente ao Poder Judiciário para denunciar retaliação. Ela atua em Ladário, a 320 km de Campo Grande.

No processo, que tramita na 1ª Vara Federal de Corumbá, a defesa informa que ela foi afastada em LTS (Licença para Tratamento de Saúde) por noventa dias. Contudo, a sargento desconhece o motivo da decisão. O pedido é que a Marinha se manifeste nos autos e que o afastamento irregular seja imediatamente cessado.

“Trazendo os documentos que embasaram tal afastamento compulsório e sem qualquer propósito, uma vez que nem isso a autora conseguiu pelas vias administrativas e, havendo indícios de irregularidades, que o afastamento irregular seja imediatamente interrompido”, solicita a advogada Bianca Figueira Santos.

Na última sexta-feira (dia 20), o juiz federal substituto Daniel Chiaretti determinou prazo de cinco dias para que a União informe os motivos do afastamento da sargento.

De acordo com a advogada, a militar Alice passou por um evento inesperado. “Um oficial, capitão de mar e guerra (médico), o mesmo que coronel nas outras Forças, foi designado especialmente para realizar inspeção de saúde na Alice. Ela estranhou, pois dias antes, já havia passado pela Junta Regular de Saúde do próprio hospital em que trabalha, para realizar sua inspeção com o médico que a acompanha, tendo recebido o [resultado] Apto, com algumas restrições. No passado, ela já passou por processos de depressão e crises de ansiedade que já se encontram completamente estabilizadas”.

Em entrevista ao Campo Grande News, Bianca Figueira Santos relata que o oficial-médico chegou a Ladário em 10 de agosto, portanto, depois da decisão judicial. Ao todo, foram chamados dez militares para a inspeção.

“A Alice, como sempre, acatou a ordem e estava na 8ª posição na fila para a suposta inspeção de saúde, quando, de repente, foi passada à frente de todos os outros, causando perplexidade aos presentes que logo comentaram: ‘eles vieram aqui para inspecionar você, sargento Alice’".

No dia 19 de agosto, foi comunicada sobre a licença. A justificativa verbal é de que o afastamento foi motivado por não existir médico endocrinologista em Ladário, Corumbá e região que pudessem a acompanhar no processo de transição hormonal de gênero. Porém, o atendimento já é feito de forma remota.

“Agindo assim, a Marinha se utiliza de um artifício para não dar efetividade à decisão do juiz da 1ª Vara Federal de Corumbá. Pois, afastada em casa, ela não precisará utilizar uniforme e cabelos femininos, nem mesmo utilizar a plaqueta de identificação com seu nome social no uniforme. Ou seja, foi um ato malicioso de burlar o cumprimento da ordem judicial que o juiz já tomou conhecimento”, afirma a advogada.

Justiça Federal - No mês passado, o juiz aceitou pedido para que Alice Costa use nome, uniforme e corte de cabelos femininos. A militar faz parte da instituição desde 2011. Após oficializar a mudança de nome, solicitou a Marinha, por via administrativa, para fazer as mudanças. Contudo, a resposta foi negativa e a militar recorreu à Justiça.

Contudo, esse não foi o ponto final da história da busca de Alice pelo direito de ser quem se é. A União recorreu ao TRF 3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) para derrubar a decisão favorável à transexual.

Conforme o recurso, a carreira ocupada pela militar é exclusiva do sexo masculino e exige aptidão física incompatível com a sua constituição física. Também foi alegada a inviabilidade de alojamento e banheiro privativos para ela em embarque de navios.

“Argumenta, ainda, que o ingresso da autora nos quadros da Marinha se deu em vaga de concurso destinada a pessoas do sexo masculino e que o seu reenquadramento funcional para cargo/função destinado ao sexo feminino resta impossibilitado”.

Numa primeira decisão, o TRF 3 negou o recurso da AGU (Advocacia-Geral da União). Primeiro, o desembargador federal Valdecir dos Santos destacou que a ação não pede banheiro feminino ou reenquadramento dentro da Marinha.

Marinha de Ladário informou somente que o "caso se encontra na esfera jurídica".
Marinha de Ladário informou somente que o "caso se encontra na esfera jurídica".

“Ademais, ainda que a questão fosse pertinente e estivesse inserida dentro da causa de pedir e do pedido, entendo que a simples adoção de um alojamento/banheiro unissex dentro das embarcações seria suficiente para resolver a celeuma, não sendo necessárias maiores digressões sobre o caso”, analisa o desembargador.

Perigosamente discriminatória Na sequência, Valdeci dos Santos alerta que a sustentação do procurador federal no recurso contra a militar é perigosamente discriminatória.

“A alegação da União no sentido de que admitir o ingresso da autora na Marinha, nas funções que ocupa, seria o mesmo que ‘admitir o piloto de avião cego e o segurança armado tetraplégico’, ainda que por óbvio não tenha sido a intenção do ilustre procurador, me parece perigosamente discriminatória”.

Para o desembargador, também não cabe mudar a decisão, porque não houve mudança de gênero na cédula de identidade. Valdeci dos Santos destaca que não é papel do Estado definir o gênero da pessoa, manifestação que cabe apenas ao próprio indivíduo.

“E, consequentemente, o modo como se dará essa manifestação também é atributo personalíssimo. Portanto, a alteração no registro civil da pessoa transgênero é totalmente optativa, e não pode servir como instrumento definidor do gênero”.

No dia 9 de agosto, o desembargador manteve a decisão para que a militar transexual adote uniforme e cabelos de acordo com os padrões exigidos para os membros do sexo feminino, além da utilização de plaquetas de identificação com o seu nome social adotado, independentemente do registro civil.

“O perigo de dano, por sua vez, está caracterizado na possibilidade de renovação diária do estado de indignidade a que a autora estaria submetida caso permanecesse obrigada a atuar com vestimentas e identificação de gênero que não lhe pertencem”. O mérito do recurso da Marinha ainda será julgado pelo Tribunal Regional Federal.

O comando do 6º Distrito Naval, localizado em Ladário, informou somente que o caso se encontra na esfera jurídica.

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