Obra milionária funcionou por um ano e está abandonada há uma década
Sistema de irrigação foi feito em Itaporã para bombear água de rio a 130 propriedades; prejuízo aos cofres públicos é de R$ 59 milhões
Uma mega e milionária estrutura abandonada no meio do mato. Canais de concreto tomados pela terra entre lavouras de soja. Casas de máquina habitadas por morcegos, dutos de aço despencando de pilares de cimento, reservatórios gigantescos que se transformaram em dor de cabeça para os donos das terras onde foram construídos e um caminhão de dinheiro público jogado fora.
A realidade do sistema de irrigação instalado no distrito de Santa Terezinha, um povoado de 800 habitantes, cercado por lavouras de soja, no município de Itaporã, a 227 km de Campo Grande, levou o Ministério da Integração Nacional a cobrar R$ 59,6 milhões do governo do Estado. A quantia corresponde ao valor atualizado do contrato 076/99, que nasceu em 26 de novembro de 1999 com montante de R$ 11,4 milhões.
Enquanto o dinheiro parece ter tomado rumo incerto no correr dos anos, o fracasso achou endereço no povoado, que sonhou em ser celeiro de produção frutífera de alta qualidade. Faz pelo menos uma década que o emaranhado de dutos e canais que cortam quilômetros e quilômetros de propriedades particulares está abandonado. Há dez anos nem uma gota de água do Rio Brilhante é captada pelo sistema. Tudo está lá, deixado ao relento, se deteriorando pelo tempo.
Nesta sexta-feira (22), o Campo Grande News esteve na Gleba Santa Terezinha e percorreu boa parte do sistema de irrigação que foi um fracasso total. Nada do esperado aconteceu. O sonho acalentado ainda na década de 90 virou pesadelo para alguns produtores e principalmente para o cofre público.
Pronto, mas inoperante - “O sistema todo foi concluído pelo governo, mas foi mal projetado, é muito caro, tinha muito desperdício de água. De cada cem litros captados no rio, 70 se perdiam até chegar ao destino final. O governo fez a parte dele, mas depois que estava tudo pronto abandonou e não tinha como os produtores assumirem os custos. Um ano depois de funcionamento, as máquinas pararam de bombear água porque a conta de energia era cara demais e não tinha quem pagasse. Aí parou tudo. Está assim até agora”.
O relato é Ademir Pereira de Freitas, o Dico, um dos 130 produtores de Santa Terezinha que deveriam ser beneficiados com o sistema de irrigação. Assim como ocorreu com os demais agricultores do local, o canal equipado com um moderno sistema de bombeamento chegou até a frente de sua propriedade, mas nunca foi usado por ele.
“Não utilizei nem uma gota da água que chegou aqui por um tempo. Precisava investir uns R$ 60 mil na época para distribuir a água na propriedade e como não tinha uma linha de crédito específica para isso, desisti da irrigação, abandonei o sonho de plantar fruta e continuei plantando soja”.
Presidente da associação de produtores do distrito, Dico acompanhou a reportagem do Campo Grande News nos locais onde o sistema de irrigação foi instalado. Ele conhece como ninguém a história do projeto e só lamenta pelo desperdício do dinheiro público. “Isso foi feito errado. Foi um erro. Não tinha como dar certo”.
Sonho de Derzi – Ademir Freitas contou que o sistema começou a ser instalado no fim do governo de Wilson Barbosa Martins (1995-1998), mas foi concluído no governo de Zeca do PT (1999-2006). Em menos de cinco anos, toda a gigantesca rede de dutos e demais estruturas estava pronta. “Dinheiro para a obra não faltou. O que faltou foi dinheiro para o produtor fazer o investimento necessário na propriedade e poder usar o sistema”.
Dico lembra que o então deputado federal Flávio Derzi (morto em agosto de 2001, vítima de câncer) pretendia apresentar um projeto de lei na Câmara para criar uma linha de crédito específica do Banco do Brasil para financiar a parte dos agricultores. “Mas ele faleceu e junto com ele morreu a ideia”.
Milhões abandonados – O sistema de irrigação de Santa Terezinha foi implantado por duas empreiteiras contratadas pelo governo de Mato Grosso do Sul. A estrutura inclui três estações de captação de água em três pontos diferentes do rio.
Uma delas deveria encher um reservatório de 48 milhões de litros, construído numa propriedade particular, assim como todo o sistema. As outras duas deveriam abastecer outros três reservatórios menores.
Até os reservatórios, a água era bombeada pelas máquinas instaladas nas estações de captação. Dos reservatórios, era distribuída “por gravidade” para os canais abertos – valas feitas de concreto equipadas com bombas menores e comportas, para controle do volume de água.
Os canais começam nos reservatórios e cortam todas as 130 propriedades. Em cada propriedade tem uma “casa de máquina”, construída em alvenaria, onde foi instalada uma bomba elétrica para mandar a água para o sítio.
“Até esse ponto o sistema foi feito, mas daqui para frente o custo teria que ser do produtor e poucos tinham condições de bancar do próprio bolso”, conta Ademir Freitas. Segundo ele, dos 130 produtores que deveriam ser atendidos, menos de dez implantaram os pivôs de irrigação nas terras para usar a água do sistema.
“Quando o governo tirou o time de campo e a água parou de chegar às propriedades, esses produtores ficaram com o prejuízo. Agora eles pensam em abrir poços artesianos e usar o sistema que já pagaram. Um já fez isso”, afirmou o produtor.
Do sonho ao pesadelo – A ideia de transformar Santa Terezinha em um grande produtor de frutas fracassou junto com o sistema de irrigação do governo, mas Cesar Janzeski pagou caro por isso.
Dono de um dos lotes em que os canais chegaram à porta de casa, Cesar usou as economias e o lucro da suinocultura que mantém em Santa Terezinha para implantar os pivôs de irrigação e começou a plantar goiaba.
Mas, a empolgação do descendente de poloneses nascido em 1960 no Rio Grande do Sul foi ainda mais longe. Acreditando que Santa Terezinha fosse se tornar um polo de produção de frutas, Cesar Janzeski decidiu instalar uma fábrica de polpas. Começou processando a produção própria e logo depois passou a comprar a goiaba produzida por um vizinho.
Foi aí que o sonho começou a se tornar pesadelo. Se não bastasse o sistema de irrigação abandonado pelo governo, Cesar Janzeski sentiu na pele o preço da burocracia para se abrir um negócio no Brasil e sofreu com a pressão da concorrência e da fiscalização do Ministério da Agricultura.
“Cheguei a jogar 130 toneladas de polpa aos porcos para não ter que pagar uma multa porque dois fiscais do Ministério da Agricultura fizeram exigências absurdas e me deram 30 dias para cumpri-las. Mas eu não desisti, fiz todas as modificações necessárias no prédio, investi em equipamento de alta qualidade e em fevereiro agora faz um ano que estou produzindo seis tipos de polpas. Ainda não estamos na capacidade total, começamos aos poucos, mas vamos crescer”, afirmou ele ao Campo Grande News na varanda de sua casa, ao lado da indústria, no núcleo urbano de Santa Terezinha.
Sem as frutas que deveriam ser produzidas no distrito, Cesar Janzeski busca os produtos em várias cidades brasileiras para processar em sua fábrica. Com um pequeno caminhão com câmara fria, ele viaja até Bento Gonçalves (RS) para buscar uva, vai ao Espírito Santo para comprar mamão, compra morango em Lages (SC) e acerola na região de Umuarama (PR).
Só a goiaba é produzida em seu sítio e na propriedade de outro morador do distrito e o maracujá vem de Ivinhema e Itaquiraí. “O resto eu compro em outros estados, vou lá pessoalmente selecionar as frutas e negociar preços”, conta Cesar.
“Com certeza se o projeto tivesse dado certo e mais agricultores daqui estivessem produzindo fruta, o custo de produção da polpa seria menor e haveria mais condições de disputar mercado”, afirma o produtor, que vende a polpa em feiras de Dourados e mercados de Itaporã, mas já negocia para exportar para outros estados.
Apesar do investimento de R$ 1,8 milhão e muita dor de cabeça com a burocracia governamental, Cesar mantém a esperança e ainda acredita que Santa Terezinha possa se tornar grande produtor de frutas. “Eu vou construir um poço artesiano e usar o sistema que implantei. Outros podem fazer o mesmo”.
Já Ademir Freitas, o Dico, é mais realista: “Esse sistema fracassou. Talvez se todos os produtores tivessem feito os investimentos para usar a água e se o governo não tivesse nos abandonado, quem sabe poderia ter dado certo. Mas do jeito que está, não serve pra nada”.
Abandonado – Relatório de 2008, que integra o pedido de tomada de contas especial, já revelava o cenário de abandono. Na ocasião, visita técnica apontou que “'em resumo, toda a infraestrutura de irrigação do Projeto Santa Terezinha (…) está abandonada. Nas estações de bombeamento, estão sendo depredados e roubados os cabos elétricos de cobre, os medidores (hidrômetros), as caixas d'água para escora das bombas, os motores e as bombas. Os canais de adução e de distribuição, bem como os reservatórios, encontram-se com rachaduras decorrentes da falta de uso e de manutenção, o que tem favorecido o desenvolvimento da vegetação. (…)
Nas áreas ao redor das estações de bombeamento, o mato cresce há vários anos”.
Os recursos do convênio foram transferidos à Secretaria de Estado de Habitação e Infraestrutura do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul para a “Complementação das obras de Infraestrutura de irrigação na gleba de Santa Terezinha”, no município de Itaporã.
À época, o valor total era de R$ 11.432.603,60, sendo R$ 1.039.327,60 de contrapartida da governo e R$ 10.393.276,00 do Ministério da Integração. A reportagem solicitou informação à assessoria de imprensa do governo, mas não obteve resposta.
Ressarcimento – A tomada de conta especial é um instrumento que os ministérios dispõem para ressarcir ao erário os recursos desviados – ou aplicados de forma não justificada – seja por pessoas físicas, entes governamentais ou entidades sem fins lucrativos.
As tomadas são instauradas pelos próprios gestores depois de esgotadas todas as medidas administrativas possíveis para regularização do dano. Em seguida, são encaminhadas à CGU (Controladoria-Geral da União), que irá se manifestar sobre a adequada apuração dos fatos, as normas eventualmente infringidas, a identificação do responsável e a precisa quantificação do prejuízo. Em alguns casos, os processos são devolvidos ao órgão de origem, para revisão ou complementação de dados.